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Aggretsuko: a terceira temporada é PERFEITA

Existe uma falácia sobre Aggretsuko. Se grande parte das pessoas acha que desenho animado é coisa de criança, imagina um desenho animado da Sanrio? Mas Aggretsuko, que acaba de estrear sua terceira temporada na Netflix, é um caso bem diferente. Vou tentar explicar os motivos aqui.

1_O retrato de uma geração – e não estou falando da Lena Dunham

Ansiedade no trabalho: basicamente todo mundo que está empregado tem, e quem não tem é privilegiadíssimo. Quem não está empregado também tem ansiedade: por não ter um emprego. Para quem não conhece a história do desenho, ele acompanha a trajetória de Retsuko, uma panda vermelha que trabalha no setor de contabilidade de uma empresa. Ela é solteira, tem um chefe assediador e um salário bem curtinho, diametralmente oposto à quantidade de trabalho que ela precisa dar conta de fazer.
Mas Retsuko tem um segredo: ela desabafa suas mágoas no karaokê cantando death metal.
Tudo isso já está presente desde o começo da série, esse é o mote da personagem. E já não parece um tema infantil, certo? No começo, tudo ainda é tratado de maneira bem simples. Mas as coisas vão se complicando na segunda temporada e ainda mais na terceira. Digamos que Retsuko começa a entrar numas de existencialismo, e mesmo que não chegue ao Marx, desperta reflexões profundas sobre o nosso estilo de vida e a sociedade.

2_IDOLS

Vou contar uma história: da primeira vez que fui ao Japão, um dos programas que queria muito fazer era ir ao café do AKB48.

Essa é uma formação do AKB48, não faço ideia se é a atual

AKB vem do bairro de Akihabara, uma região de Tóquio que ficou conhecida como um centro comercial de eletrônicos e depois virou uma meca geek. O apelido de Akihabara é Akiba. 48 é o número de integrantes desse grupo – pois é! Mas é muito raro que elas se apresentem todas juntas. A ideia é dividi-las em grupos menores, e assim criar uma programação extensa e intensa com eventos espalhados acontecendo a todo momento. O AKB48 é um ótimo exemplo de como funciona esse universo das idols contemporâneas: a importância do meet & greet, a estratégia supermarketeira de divulgação, a exploração da imagem de ingênua e novinha junto a um público mais velho masculino (pois é, um horror), o ícone descartável que quando chega em certa idade já não serve mais para a carreira.
Eu e meu marido entramos no café do ABK48 (que fechou as portas no ano passado) e pedimos umas bebidinhas fofas. O cardápio era o comum nesses cafés temporários kawaii, comidas bonitinhas temáticas com um gosto OK. Bandeirolas, porta-copos, loja recheada de merchandising e um telão com imagens de clipes das meninas chamavam a nossa atenção, mas algo era óbvio ali. O público. No horário que fomos, estava meio vazio (não era um horário de apresentação delas ao vivo), então os gatos pingados que compareceram eram homens engravatados de meia idade, chamados no Japão de salarymen.

This is salarymen

Na terceira temporada da série, Retsuko se envolve com um grupo underground de idols (YES, that's a thing) chamado OTMGirls. Já tem álbum no Spotify e tudo.

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OTMGirls também ganhou linha de produtos da Tower Records (a Tower Records, surpresa, ainda existe no Japão, que segue como um dos maiores mercados fonográficos em matéria de mídia física). Um grupo fictício que ironicamente funciona quase do mesmo jeito que as idols da vida real, vendendo merchandising.

A cena de idols underground e seus fãs são retratados em um documentário sobre o qual acho que já falei aqui mas falo de novo: Tokyo Idols, também disponível na Netflix assim como Aggretsuko. Recomendadíssimo.

Toda a problemática que envolve o mundo das idols underground aparece em Aggretsuko. O assédio, a vida dura (elas ganham pouco dinheiro), as situações às quais elas se sujeitam. Achei bem instigante a forma como tudo isso é apresentado, sem fugir da reta e também sem pesar a mão num anime que é, inicialmente, leve.

A combinação de j-pop de idol com death metal tem precedentes. E um deles, especificamente, a gente ama: leia mais sobre Babymetal nesse link!

3_SUBEMPREGO

A ideia de subemprego no Japão é bem mais desenvolvida do que na nossa realidade, você pode imaginar. E é por isso que a gente se identifica tanto com o que é apresentado em Aggretsuko. Com esse pensamento de "poderia ser pior", a gente se esquece o quanto está ruim para todos no geral.
E o que pode ser pior do que ser analista de contabilidade com um chefe assediador? A terceira temporada mostra mais de um exemplo, mas eu queria me atentar ao de Manaka, a líder das OTMGirls, que mantém um emprego paralelo ao seu sonho de idol.

Confesso que a minha primeira impressão em relação a Manaka não foi das melhores. Não gostei do desenho em si, essa coisa kawaii forçada que geralmente não aparece em Aggretsuko a não ser de forma irônica. E tampouco curti a personalidade dela, meio Regina George. A princípio, ela é antagonista, então faz sentido essa antipatia.
Só que a personagem vai ficando mais complexa e você a entende melhor. Manaka trabalha em konbini, aquelas lojinhas de conveniência que são parte inerente da cultura urbana japonesa.

FamilyMart, uma das muitas marcas de konbini

Trabalhar em konbini é um subemprego no Japão: paga-se pouco e você tem um vínculo empregatício bem "elástico” para dizer o mínimo. As pessoas enxergam esses trabalhadores com maus olhos: são mal-sucedidos e, para eles, provavelmente a culpa é deles mesmos. Numa lógica neoliberal, se eles se esforçassem, se dariam melhor. Um bom jeito de entender esse universo dos trabalhadores de konbini é lendo o livro Querida Konbini, da Sayaka Murata, que tem tradução em português (da Rita Kohl) em edição brasileira da Estação Liberdade.

A protagonista dessa história, Keiko Furukura, é o que seria considerada "socialmente esquisita” por geral. Tem 35 anos, nunca namorou, segue trabalhando numa konbini sem ambições. A história é cáustica a respeito dos valores da sociedade. E eu adoro histórias assim!
Quais são as implicações da falta de ambição? O que você deveria valorizar mais na sua vida?

4_Uma metáfora sobre o amadurecimento e…

(Leia esse subtítulo de maneira afetada)
Aggretsuko é isso: sobre as agruras da vida adulta. Ou seja: maravilhoso para millennials que adoram reclamar. Falta um pedaço dessa trama para tudo ficar completo, né? O amor. Ou melhor: a fantasia do amor. Aggretsuko trata do tema assim mesmo, de maneira praticamente desesperançosa. Acho ousado e bom. Fantasias românticas são destruídas de maneira sistemática, sem dó. Existe a possibilidade de um encontro de almas? Até que sim, mas não é simples nem duradouro.
Mas também não espere por algo muito cabeçudo. Vou dar um exemplo: a terceira temporada começa com Retsuko investindo em um relacionamento com um namorado virtual em uma espécie de jogo que usa óculos de VR. Investindo literalmente: ela acaba gastando muito do seu salário baixo nele.
Isso não soa impossível nos dias de hoje. Muito pelo contrário.

Histórias fictícias sobre amadurecimento geralmente tem um defeito: presume-se que o amadurecimento é um fim, e quando se chega ao fim, a história termina. Aggretsuko é mais realista: amadurecimento não é um estágio final e duradouro. Para o millennial, ele é que nem a felicidade: aparece pouco, some logo e é instável.

5_Um quadro completo e complexo

A cada temporada, mais personagens aparecem. E eles todos possuem mais dimensões do que a gente normalmente encontra em desenhos animados. Cada um possui uma história e trajetória próprias. Uma das minhas preferidas é a Gori.

Existe um problema em Gori, a personagem gorila, já apontado por pessoas com muito mais lugar de fala que eu. Só que ele é bem complexo. Na dublagem para o inglês, a voz de Gori é de uma mulher afro-americana, o que reforça o ponto. Assisto no áudio original com legenda, portanto para mim a coisa é mais sinuosa: não acho que é blackface. Sempre vi a Gori como uma japonesa, assim como todos os outros personagens que são animais humanizados. Enquanto a personagem não se identificar claramente como negra na trama, não vejo isso como problema. No fundo, dado o racismo da sociedade japonesa, o "raciocínio-padrão" entre muitas aspas seria não imaginá-la como de outra raça que não seja amarela, dada a sua posição bem-sucedida em uma empresa.
No texto que linkei, a autora do post fala sobre simbologias nas falas. Então é mais uma questão de direção de dublagem – Gori para mim é o estereótipo de executiva japonesa bem sucedida e solteirona, que se dedicou ao trabalho e esqueceu da vida pessoal. Não deixa de ser problemático, mas é oooooutra coisa.

A terceira temporada de Aggretsuko está no ar na Netflix.

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