Há mais mistérios entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã filosofia

A frase do título é de William Shakespeare.
Tenho pensado muito nisso, tanto na atração mórbida pela ignorância que parece ter assolado o mundo (vide esse post sobre o novo Matrix e a minha atração pela série Years and Years) quanto no nosso apego pela providência de outrem. Estamos no século 21 e ainda explicamos coisas com a nossa fé - em Deus, em Nossa Senhora, no horóscopo.

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Tudo isso para dizer que estou lendo um livro muito interessante chamado As Bruxas: Intriga, Traição e Histeria em Salem, da jornalista vencedora de prêmio Pulitzer Stacy Schiff.

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E por que ele é bom?
Bem, primeiro de tudo ele não é uma ficção: Schiff usou de documentos históricos para fazer uma reportagem sobre esse episódio horroroso da história dos EUA que aconteceu no século 17 na baía de Massachusetts e culminou na morte de 14 mulheres, 5 homens e dois cachorros. Todos acusados de bruxaria. Sim, bruxaria.
É surreal porque Schiff descreve as coisas como acreditava-se que elas eram, mesmo. Ela não escreve num tom superior de “eles acreditavam nisso, imagina que loucura?” É esperto da parte dela. Nos dias de hoje parece pouco improvável que alguém seja acusado de bruxaria e acabe com pena de morte, essa é a minha sensação…
Será?
Vou colocar um trecho do livro aqui:

Bruxas haviam perturbado a Nova Inglaterra desde a fundação. Elas afogavam bois, faziam o gado pular, derrubavam frigideiras, o feno das carroças, encantavam a cerveja. Lançavam coisas no ar, até criaturas desmembradas. Sem razão aparente, Hathorne perguntou a Tituba se ela sabia alguma coisa a respeito do menino de Corwin. Provavelmente imaginava que ela teria aleijado o filho manco do juiz, de nove anos, embora houvesse outros candidatos. As bruxas conseguiam estar em dois lugares ao mesmo tempo ou sair secas de um lugar molhado. Caminhavam sem ruído sobre tábuas soltas, teciam linho fino, conheciam segredos para clarear panos, sobreviviam a quedas. Podiam ser briguentas e resmungonas, ou inexplicavelmente fortes e inteligentes.”
— Stacy Schiff em As Bruxas

Ainda estou meio que no começo do livro, mas já para perceber que, bem…

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Quando não encontramos explicações racionais para as coisas, partimos para outras explicações.

Terraplanismo, movimento antivacina, coach quântico… Poderíamos ficar aqui enumerando tantos fenômenos contemporâneos. É surreal, mas às vezes tem gente letrada que se nega a ver coisas. Gente que acredita que o reator de Chernobil na verdade não explodiu. Que não fomos para a lua até hoje.

Onde quero chegar? Em dois lugares:
1. Será que vermos o que acredita em algo diferente da gente como alguém burro ou do "time oposto” não é apenas um desserviço? Tentar compreendê-lo não seria um caminho mais viável? Não sei a resposta, pergunto por que isso é uma dúvida bem forte minha. Talvez não exista diálogo mesmo, mas acho que já partir do pressuposto que não existe diálogo soa, no mínimo, preguiçoso da nossa parte.
2. Pessoas esclarecidas acreditavam em bruxas. Isaac Newton, por exemplo. Ao mesmo tempo vemos a nós mesmos como seres tão esclarecidos. Tão diferentes do "time oposto". Será mesmo? Ontem (7/09) no Festival Coala fiquei observando os frequentadores. Muito tilelê, o que a direita adora chamar de esquerda caviar (odeio o termo porque foi cravado pela direita, mas no fundo a gente entende o que eles querem dizer). No palco, uma artista cantou uma música feminista acompanhada por uma banda só de homens. Isso foi a contradição mais clara entre tantas outras - como a comunicação do energético patrocinador dizendo "Estação resistência" numa referência dúbia à resistência elétrica mas também um óbvio toque político. Hay que ser esquedista pero sin perder lo capitalismo jamás? Tudo isso me fez pensar bastante. O inferno são eles ou nós mesmos, ou todo mundo junto? Existe o inferno? Quem somos nós na fila do capeta?

Vem, meteoro, e mata o resto das bruxas e dos puritanos que restaram porque, valha-me: não deu certo, não.