Tocando o terror: a segunda temporada de The Terror é babadeira
Fico apavorado só de ver a foto. Sou desses.
Tenho uma relação de amor e ódio com filmes e séries de terror. Adoro, mas odeio sustos. Vai entender.
Quem gosta de American Horror Story mas às vezes acha que Ryan Murphy erra a mão e descamba para algo bobo ou clichê (eu sou desse grupo) pode curtir The Terror: Infamy, a segunda temporada da série The Terror.
Assim como AHS, The Terror também mudou tudo da primeira para a segunda temporada. Mas aqui nem a turma de atores se repete. Não vi a primeira, mas essa segunda possui uma característica que já chama a minha atenção logo de cara: o elenco é composto em sua esmagadora maioria por japoneses ou descendentes de japoneses.
Existe um motivo de ordem prática: a trama fala de um momento horroroso nos EUA, logo após o ataque de Pearl Harbor, no qual foram constituídos campos de concentração para japoneses e descendentes residentes nos EUA, como uma forma de controle caso existisse algum espião. Como o Japão era o inimigo, quem tinha sangue japonês automaticamente se transformou em inimigo também. Esses campos existiram na vida real, uma mancha na história norte-americana, mas não eram campos de extermínio como o dos nazistas – limitavam o direito de ir e vir de pessoas que eram cidadãs.
Ter um elenco amarelo como protagonista já é uma grande novidade. E retratando um grupo deles de maneira hábil e profunda, a série consegue trazer nuances nos personagens que quebram estereótipos e ao mesmo tempo reforçam traços culturais de um povo.
Um homem bebe demais. Outro tem o sonho de estudar fotografia em uma grande universidade. Seu pai acha errado, é mais submisso aos brancos e tem um barco de pesca; batalhou e considera que o carro que conseguiu comprar é o símbolo de seu sucesso. Uma mulher acredita em espíritos e faz mandingas que trouxe do seu ex-país para proteção. Outra parece obediente diante dos pais mas está de namorico com um gaijin (estrangeiro), algo que ainda hoje é tabu nas colônias nipônicas.
(Ah, assistir a essa série é um bom exercício para os preconceituosos que acham que japonês é tudo igual. Treine seu olho: posso te garantir que você vai conseguir diferenciar os personagens, tá? <3)
E, claro, tem a parte do terror. Esse grupo de japoneses estabelecido na Califórnia se depara com várias situações estranhas e começa a acreditar que os espíritos ruins do imaginário japonês os acompanharam na imigração. Uma coisa que acho instigante logo de cara é que eles em nenhum momento levantam a possibilidade de que essa malignidade seja algo dos EUA – o mal veio de fora, como eles. Mesmo que os abusos reais que estão sofrendo venha das autoridades norte-americanas, ou seja, de dentro.
E o subtítulo que a série recebeu nessa segunda temporada? Infâmia. Para os orgulhosos japoneses, essa é uma pecha carregada de dor. Quem é infame não é merecedor. Suicídio por infâmia é algo extremamente comum no Japão – vide um caso recente, de uma participante do reality show Terrace House que, ao que tudo indica, se matou após ataques de cyberbullies.
No caso da série rola uma dubiedade: infâmia pode se referir ao protagonista Chester, que encomendou uma poção abortiva para interromper a gravidez acidental da namorada espanhola Luz (Cristina Rodlo). E também pode remeter ao fato do Japão ter atacado Pearl Harbor. E ainda ao preconceito racial despertado por esse ataque, e aos campos de concentração.
Para quem está familiarizado com j-terror e gosta, The Terror: Infamy é um prato cheio. Imagens surreais de yokai (ou yurei, infelizmente não tenho tanta intimidade com o assunto para saber a diferença) são abundantes. O simbolismo da mulher jovem, bela e demoníaca é central na história – pense em O Chamado, O Grito, Água Negra.
O paralelo com a xenofobia que cresce no mundo (e especificamente nos EUA) é inevitável. Ao longo dos episódios, o medo do que é diferente dos norte-americanos corre paralelamente ao pavor de algo ancestral entre os nipo-americanos, e ao que o destino os reserva sem que eles possam fazer algo. Eles escaparam de uma realidade na ex-terra natal mas trouxeram seus traços culturais, seu fenótipo e algo irreal, de ordem sobrenatural, com eles, como se isso fosse inevitável. Como se não pudéssemos nos livrar das raízes. Tornaram-se cidadãos norte-americanos mas não escaparam da diferença e marginalização aos olhos dos brancos e nem da diferença que enxergavam em si mesmos, para sempre estrangeiros com uma sensação de inadequação.
The Terror: Infamy está na Amazon Prime.