Meiko Kaji: a rainha está vivíssima e num papel maravilhoso

"Todos somos únicos e diferentes, e isso é algo maravilhoso"

É essa frase que Meiko Kaji fala logo no primeiro episódio da série Kinou Nani Tabeta?, ou O que você comeu ontem? em português. Sem trocadilhos, por favor: é uma série inspirada em um manga de Fumi Yoshinaga sobre um casal gay de meia idade vivendo em Tóquio. Kenji Yabuki (Seyô Ushino) é cabeleireiro e Shiro Kakei (Hidetoshi Nishijima) é um advogado, e o segundo ainda está no armário no trabalho. Kaji faz o papel da mãe de Kakei, que é super pra frentex e quer que o filho saia do armário, do alto da sua gueta!

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Hisae Kakei

Mais conhecida como o ícone Meiko Kaji

Ah, se você não sabe quem raios é Meiko Kaji, posso te mostrar…

O babado é CERTO. Mas vamos começar do começo: o trabalho marcante do começo da carreira dela aconteceu no começo dos anos 1970, na cinessérie sobre delinquentes juvenis (isso mesmo, era uma série de filmes sobre delinquentes juvenis) chamada Noraneko Rokku.

Acho que é ela no 1'27''.
O estúdio que produziu esses filmes é o Nikkatsu. Só que a coisa tava começando a enveredar para a bagunça - eles estavam entrando na onda do pinku eiga, tipo uma versão nipônica da nossa pornochanchada. Para evitar participar desse tipo de filme, Kaji foi para a grande Toei. Acontece que lá ela acabou entrando em quase que um primo do pinku eiga, uma exploitation na vertente "mulheres na cadeia” - ou você achava que Orange is the new Black tinha brotado apenas de uma história real?

Sim, existe um subgênero "filmes de mulheres na cadeia” no qual são explorados temas como voyeurismo, sexo lésbico, bondage, estupro - você pode imaginar todos os tipos de abuso, né? E Kaji é a estrela de um dos maiores clássicos do gênero, mas numa pegada fina: Joshū Nana-maru-ichi Gō / Sasori (1972). Ou, para os ocidentais, Female Prisioner #701: Scorpion.

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Quando eu digo "pegada fina", meu bem…

I really mean it

A personagem de Kaji, Nami Matsushima, é enganada pelo boy dela, um policial corrupto, e acaba estuprada por uma gangue de traficantes. Ela tenta esfaqueá-lo mas não rola, e acaba presa. É lá que ela recebe o número 701.
Ela vai passando por poucas e boas, mas vai criando uma casca grossa e se transformando na sinistra Scorpion. E sua sede de vingança só aumenta…

Se a música não é estranha para você, não é uma coincidência. O tema da cinessérie Scorpion, chamado Urami Bushi, é cantado pela própria Kaji foi usado para um filme que também trazia uma mulher com muita sede de vingança: Kill Bill. O outro tema que apareceu ali no começo, Shura no Hana, tema de outro filme e também cantado pela artista, aparece em outra cena de Kill Bill:

Digamos que Quentin Tarantino gosta BASTANTE de Meiko Kaji.

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Lady Snowblood

foi lançado logo em seguida do primeiro Scorpion, em 1973

O longa também é uma história de vingança. A história é uma loucura: Sayo viu seu marido e seu irmão morrerem nas mãos de quatro criminosos. Ela consegue matar um mas vai presa. Aí seduz os guardas e transa com eles para poder conceber Yuki, que é a personagem de Meiko Kaji. Uma filha concebida para a vingança! A missão dela é matar os três criminosos restantes. E, claro, ela vira uma máquina de matar, mesmo!

Nos anos 1980, Kaji acabou indo trabalhar na TV.
Com a redescoberta do seu lado cantora via Tarantino, ela lançou um disco novo em 2011:

O álbum tem momentos surpreendentemente roqueirões ao lado das esperadas baladas! Um babado.

E a notícia meio boa, quase boa, é que tem uma página do Facebook que está publicando a série Kinou Nani Tabeta?. Acontece que… as legendas estão em espanhol. Pero hagamos un esfuerzo kkkkkk Vem no primeiro episódio!

O mundo ficou (ou sempre foi?) pequeno demais para nós todos: China, mercado de luxo, Tarantino etc. e tal

Um artigo do Business of Fashion me chamou muito a atenção essa semana. É esse aqui sobre a atual relação de marcas de luxo em relação à China, infelizmente fechado para assinantes (mas quem tem amigos tem tudo, obrigado Manoella Cheli, kkkk). Versace, Coach e Givenchy atingiram - involuntariamente, alegam - o orgulho chinês ao fazerem peças de roupa nas quais apontam Hong Kong e Macau como países independentes, ou Taipei como uma cidade do país Taiwan, ou tudo isso junto.

Camiseta da discórdia da Coach

Camiseta da discórdia da Coach

Outras marcas, como a Chanel e a Calvin Klein, também apresentam os países como sendo independentes nas listas que aparecem nos seus sites.
O problema: essas são regiões administrativas chinesas, apesar de existirem movimentos separatistas. E o nacionalismo chinês está bombando. Resultado: boicote e quebra de contrato de celebridades chinesas como a modelo Liu Wen, que era embaixadora da Coach, ou a atriz e cantora Yang Mi, que era embaixadora da Versace, e ainda Lay Zhang, estrela do k-pop que nasceu na China, até agora ligado à Calvin Klein mas ameaçando sair.
O problema maior é que a China é um mercado superimportante para a moda, especialmente no mercado de luxo. As marcas, que estão adicionando comitês de diversidade e cargos como diretor de diversidade (?!) nas suas fileiras por causa de constantes casos de falta de sensibilidade racial e afins (para ficar num termo bem suave), parece que mesmo assim não conseguem entender questões além das suas fronteiras. Em momento de polarização política fervilhante, será que multinacionais que querem abraçar o mundo todo possuem braços curtos demais para isso?
E será que isso vai trazer valorização do que é produzido localmente, mesmo no caso do mercado de luxo? O mercado de luxo da moda, atualmente, precisa se equilibrar entre tradição, inovação e excelência de qualidade no produto e serviço. Existem marcas tradicionais chinesas capazes de virar essa chave?

Muitas, muitas perguntas. Mas a questão que mais me toca é a visão ocidental a respeito do asiático - Dolce & Gabbana inclusos, claro.

A propaganda superinfeliz e racista da Dolce & Gabbana de 2018 - saiba mais no link

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E isso nos leva ao Era uma vez em… Hollywood, filme de Quentin Tarantino recém-lançado por aqui.
Não vou entrar muito no mérito se o filme é bom ou ruim - tem bastante gente elogiando e eu achei uma bobagem, tenho achado que os filmes do Tarantino no geral envelhecem mal nesses tempos, obras feitas para homem branco hétero pretensamente sensível e sinceramente estou sem paciência para homem branco hétero pretensamente sensível. Portanto não vou falar da falta de necessidade do foco na bunda da atriz Margaret Qualley quando ela está conversando com Cliff Booth (Brad Pitt) debruçada no carro e outras objetificações da mulher (incluir uma cena de Pitt sem camisa não tira esse forte sabor de heteronormatividade masculina tosca da filmografia do cineasta). E se você quiser assistir algo sobre nostalgia e envelhecer, sinceramente acho que Dor e Glória é muito mais interessante, instigante, impactante, diverso.

Pussycat (Margaret Qualley) e Cliff Booth (Brad Pitt) - o "nome” dela também gera uma das piadas mais infames do longa

Pussycat (Margaret Qualley) e Cliff Booth (Brad Pitt) - o "nome” dela também gera uma das piadas mais infames do longa

Mas na verdade o meu ponto está na visão de Tarantino sobre Bruce Lee.
Lembrando que esse é o mesmo Tarantino que homenageou Bruce Lee em Kill Bill, então eu penso, uai?

Montagem que tirei daqui: de um lado Uma Thurman em Kill Bill (2003), do outro Bruce Lee em Jogo da Morte (1978)

Montagem que tirei daqui: de um lado Uma Thurman em Kill Bill (2003), do outro Bruce Lee em Jogo da Morte (1978)

Existiam teorias antes do lançamento do longa. Dizem que na vida real Roman Polanski, que obviamente ficou desesperado depois da tragédia envolvendo a mulher Sharon Tate (o assassinato dela grávida pelas mãos da família Manson), desconfiou de Bruce Lee como o assassino (!!!). Lee conhecia Tate e inclusive a treinou para um filme - isso aparece rapidamente no roteiro de Tarantino. O ator comentou com Polanski em um certo momento que tinha perdido os óculos - e foram encontrados óculos na casa de Polanski e Tate, que a polícia achou num certo momento que poderiam ser uma evidência.
Quem assistiu o filme ou ouviu falar das declarações da filha de Bruce, Shannon Lee, sabe que não foi bem assim que o "personagem” Bruce Lee apareceu.

Mike Moh no papel de Bruce Lee no filme de Tarantino

Mike Moh no papel de Bruce Lee no filme de Tarantino

A princípio Shannon reclamou porque Tarantino teria mostrado seu pai como uma caricatura arrogante. O que se diz é que Bruce era bem autoconfiante mesmo. Daí para arrogante, acho que depende de quem você está falando.
MAS
Existem vários relatos envolvendo mulheres autoconfiantes (como a jogadora Megan Rapinoe), ou negros autoconfiantes (como o influenciador Spartakus Santiago), ou mulheres negras autoconfiantes (como a atriz Taís Araújo) apontando-os como arrogantes.
Em todos esses, a militância defende que isso é preconceito.

Sim, isso quer dizer que achei o retrato que Tarantino fez de Bruce Lee extremamente racista.
Além disso, não acho que Tarantino só o mostrou como arrogante, mas o ridicularizou em sua insegurança de macho branco cretino. A cena é idiota. Se fosse um ator negro historicamente importante como Lee nessa cena, as pessoas estariam caindo de pau em cima do Tarantino.

Bruce nasceu na Califórnia e cresceu em Hong Kong. Foi uma estrela asiática que conseguiu destaque numa Hollywood branca e racista. Morreu tragicamente cedo.

Bruce Lee em cena em Operação Dragão (1973)

Bruce Lee em cena em Operação Dragão (1973)

A cena é importante para o desenvolvimento do roteiro? Até é: mostra que Cliff é bom de briga, traz uma informação importante sobre o passado de Cliff à tona. Precisava ridicularizar um ator asiático historicamente importantíssimo?
Não.
Tarantino, falta muito para você chegar no século 21?

Tarantino respondeu as acusações de Shannon se defendendo. Shannon não teve dúvidas: mandou-o se desculpar ou CALAR A BOCA.
Assino embaixo.

O ocidente ainda não entende o oriente em pleno 2019. É mais fácil ridicularizar e deixar na caixinha do "exótico engraçadinho”.
E a polarização aumenta…

Enquanto isso, para quem não sabe: os autores de Mate-me Por Favor estão fazendo um livro sobre os crimes de Charles Manson há uns QUINHENTOS ANOS mas parece que agora vai sair. Confira entrevista reveladora com eles na Rolling Stone.

Há 50 anos e alguns dias, acontecia o assassinato de Sharon Tate e seus amigos.
O culto de Manson era racista (especialmente com negros), coisa que não é explicitada em Era uma vez em… Hollywood. Charles Manson tatuou uma suástica na testa depois de preso.