Wakabara

View Original

A Taste of Honey: quando duas mulheres negras tomam a frente

Imagine que você está no ano de 1978. A disco music bombando, mas sendo considerada por muitos como algo supercomercial, frívolo.
E aí aparecem no palco duas mulheres negras, uma empunhando uma guitarra e outra segurando um baixo. E elas tocam disco music. E tocam de verdade. Esse era o A Taste of Honey!

A real é que A Taste of Honey surgiu bem antes, lá em 1972. A baixista Janice-Marie Johnson nem foi uma das fundadoras. Mas aí os membros começaram a sair e ela e Perry Kibble, o tecladista, sobraram. Eles decidiram manter o nome e chamaram, entre outros, a guitarrista Hazel Payne.

Me parece que o grupo sabia do poder da imagem: duas mulheres negras que não apenas cantam, mas também tocam instrumentos, certamente atrairiam olhares. Bom, claro que isso não bastava. Eles corriam o mundo, tocando em diversos lugares. E diz a lenda que foi num desses lugares, diante de uma plateia apática que não se levantava para dançar, que Janice-Marie teve a ideia de Boogie Oogie Oogie: “If you're thinkin' you're too cool to boogie / Boy oh boy have I got news for you…
Surgia um dos maiores sucessos da disco music. Ele foi o primeiro single lançado, chegou ao topo do Hot 100 da Billboard e vendeu nada menos que dois milhões de cópias na época.

Bom, se eu me deparasse com essa capa em uma loja de discos, eu não ia conseguir passar incólume sem comprar…

A Taste of Honey ainda levou o Grammy de Melhor Novo Artista em 1979. Só que infelizmente o pior aconteceu: com esse sucesso retumbante, A Taste of Honey nunca conseguiu se equiparar a Boogie Oogie Oogie e acabou reconhecida como banda de um sucesso só.

Mas a história real não é bem essa.

Para começo de conversa, a banda já fazia shows pelo mundo antes de gravar um disco. E um dos países no qual ela chamava bastante atenção era… o Japão. Vamos abrir parênteses para um capítulo que pouca gente conhece da história do pop mundial…

Sekai Kayōsai, o “Eurovision do oriente”

Também conhecido como Festival de Música Yamaha, por causa do patrocinador principal, o evento japonês durou entre 1970 e 1989 (sendo que o de 1988 foi cancelado por causa do estado de saúde do Imperador do Japão na época e o de 1989 aconteceu não mais como uma competição e sim como um concerto beneficente).
Agora, a parte legal: músicos do mundo todo participavam do Sekai Kayōsai. A primeira música que foi a grande ganhadora do festival, na edição de 1970, foi אני חולם על נעמי (Ani Cholem Al Naomi), da dupla Hedva & David de Israel. É TUDO.

Isso quer dizer que o festival era bem mais que o “Eurovision oriental”, como acabou conhecido. Virou um festival mundial com participação de muitos países de outros continentes (no mesmo ano de 1970, participaram Coreia do Sul, Japão, Chile, Singapura, Nova Zelândia, Emirados Árabes, Malásia, México, África do Sul, Bolívia, Vietnã, Filipinas, Hong Kong - alguns com mais de um concorrente na disputa!).
Claro que tudo isso pede um post exclusivo só para o Festival de Música da Yamaha um dia, né?
Virá, um dia, impávido que nem Muhammad Ali.

O que importa aqui é a edição de 1974.
Foi nela, quatro anos antes do lançamento de Boogie Oogie Oogie, que A Taste of Honey participou com Life (Don’t Have to Get You Down). É uma loucura! 1. Essa música virtualmente não existe, é considerada perdida 2. A banda ainda estava na sua formação original, sem Payne. Que coisa, né?
E quem foram os apresentadores do festival naquele ano? Kyu Sakamoto e Judy Ongg - eles assumiram esse lugar em 1974 (Sakamoto já tinha apresentado outras duas vezes, mas era a primeira de Ongg) e seguiram no posto até a morte de Sakamoto em 1985.
Reconhece o nome de Kyu Sakamoto?

Ah… Deveria.
Ele é o cantor da música japonesa mais famosa do mundo.

Até onde sei, Ue o Muite Arukō, de 1961, é a única música com letra em japonês a chegar no topo da parada Hot 100 da Billboard até hoje. E durante muito tempo, foi o único single de um artista amarelo a conseguir esse feito (até 2020, quando veio BTS e a sua Dynamite).
Mas a canção chegou ao topo com o nome de… Sukiyaki. Isso mesmo, Sukiyaki, o mesmo nome daquele ensopado com vegetais e carne. Não tem nada a ver com a música: o prato não é citado na letra. O nome incrivelmente idiota foi obra dos empresários ocidentais, que decidiram tornar a música mais identificável para o povo que não estava familiarizado com a língua japonesa. Poderia ser Yakisoba, Sushi, Tempura… Seja como for, deu certo: virou um fenômeno.

E por que falei tudo isso?
Fecha o parênteses…

Os outros hits de A Taste of Honey

Não chegou a ser número 1, mas foi número 3 do Hot 100 em 1981. Adivinha qual música o A Taste of Honey, já em formato de dupla apenas com Johnson e Payne, decidiram gravar depois do estouro de Boogie Oogie Oogie?
Sim, ela mesma. Sukiyaki.

Diz a lenda que Janice-Marie Johnson era vidrada na música desde pequena. Chegou a decorar foneticamente tudo para ficar cantando, mesmo sem saber o que aqueles sons significavam.
Não se sabe se Johnson chegou a encontrar Sakamoto no Japão naquele festival de 1974, mas em 1978, ela ouviu a versão de Linda Ronstadt para Ooh Baby Baby, originalmente de Smokey Robinson & The Miracles. Ah, então ela podia regravar um hit dos anos 1960 também, né?
Foi aí que Sukiyaki entrou na jogada. Johnson pediu uma tradução literal em inglês para Rokusuke Ei e depois a adaptou ela mesma.
Johnson e Payne eram babado - elas insistiram para que a música não fosse regravada em pegada dançante. Prefiriram um clima de balada. Também pegaram forte para trazer um sabor mais oriental para a faixa - o próprio produtor, George Duke, não botava fé mas cedeu pela vontade delas e chamou June Kuramoto para tocar koto, um instrumento de corda tradicional japonês. Tem uma cena maravilhosa que Johnson conta, do seu diálogo com Cecil Hale, o então vice-presidente da Capitol Records, na qual ele mostrou seu desprezo pela faixa dizendo “Absolutamente não! Gente negra não quer ouvir música japonesa”, no que ela respondeu “A última vez que olhei no espelho, era negra. E eu quero ouvir”.

Esse é um daqueles casos que a apropriação cultural toma contornos complexos. Dá para ver o profundo respeito que Janice-Marie Johnson tem pela cultura japonesa. De verdade. Ela estuda. Se aprofunda.
Ao mesmo tempo, Sukiyaki se transformou na música mais estereotipada (tanto quanto Merry Christmas Mr Lawrence do Ryuichi Sakamoto, sendo que as duas são lindas). E Payne tocando koto no palco, durante as apresentações, provavelmente fingindo em cima de uma base pré-gravada… Não dá, né?

Depois disso, uma música do quarto álbum, de 1982, entrou na parada Hot 100 em 41º lugar. I’ll Try Something New também era uma versão, dessa vez um cover do repertório do mesmo Smokey Robinson & The Miracles, lançada originalmente em 1962.

Payne saiu da dupla antes das gravações do quinto álbum serem finalizadas, fazendo com que o disco virasse um solo de Johnson. Ela virou atriz de teatro. As duas já chegaram a se reencontrar e se apresentar em revivais, mas ficou por aí mesmo. Só um gostinho de Taste of Honey… hein, hein? TUNDUNTSSS

Bom, para variar (eu falo isso de quase todo mundo que aparece aqui nos posts do blog), acho que A Taste of Honey merecia ser mais valorizado.
Mas sabe quem já regravou Boogie Oogie Oogie?

See this content in the original post

Amo! Esse é o segundo álbum solo da Fernanda Abreu, de 1992.

Se você gostou desse post, pode gostar desses outros aqui:
. O que aconteceu com o trio das rainhas da disco music brasileira?
. Don’t Leave Me This Way: o hit que só virou hit quando foi regravado
. Donna Summer: a dona da pista