Um resumo do SPFWN48 - sendo que nem fui em todos os desfiles

Primeiro queria dizer que é libertador.
Não ir a todos os desfiles é maravilhoso. Você fica mais descansado, você presta mais atenção no que escolheu. É difícil escolher? É. Mas também fica mais gostoso, e por mais que você possa achar ruim não ter visto uma coisa ou outra, o saldo é positivo.
O clima do SPFW dessa vez estava infinitamente melhor, também. Do tamanho certo, adequado para o tamanho do line-up, num prédio (o Pavilhão das Culturas Brasileiras) que deixa entrar a luz natural, ao redor do verde (no meio do Parque do Ibirapuera). Ufa. Melhor que um caixote todo envelopado por cortinas de veludo vinho pesadas com propagandas agressivas gritando em videomapping, eu hein.

"Mas Jorge, você gosta de tudo, né?"
Não. Eu não gosto de tudo. Mas sim, eu costumo falar mais do que eu gosto. Não só aqui. Na vida também. Só falo de algo que não gosto se acho meu comentário extremamente pertinente.

Ao mesmo tempo, gostei de praticamente tudo que vi: fiz escolhas certeiras, que bom! Alguns desfiles não vi ao vivo mas me pareceram ótimos, como o da Gloria Coelho e o do Apartamento 03. Esse último segue a linha de alguns que, além de mostrar belas roupas, segue a cartilha de que um desfile não é um simples desfile. O marketing de experiência sabe muito bem disso; parece que alguns desfiles se esqueceram. A experiência, a história por trás, tudo isso conta: é um investimento tão grande que você já faz, então vale a pena fazer intersecções, pensar em música ao vivo, algo diferente (e que acrescente, que seja um movimento orgânico e não forçado).
No Apartamento 03, apresentação de butô com João Butoh. Na Handred, Moreno Veloso cantando ao vivo. Na Fernanda Yamamoto, Chico César e o Coral Jovem do Estado de São Paulo comemorando os 10 anos da marca com um exercício intenso de upcycling do acervo acumulado por todo esse tempo. Momentos emocionantes que costuram e dão gás para a moda nacional, que andava carente de emoções positivas.

E falando em experiência, falemos do desfile de Isaac Silva, lógico.
Fui relegado para a fila B mas nem liguei. Aconteceu uma coisa muito maravilhosa nesse desfile do Isaac e que talvez poucos veículos de moda comentem. Só que é histórico. Não só o casting era formado majoritariamente por negros, como já se esperava, mas a sala de desfiles, e também a fila A inclusa, tinha uma maioria negra! Sabe quando isso aconteceu antes? Nunca. Nunquinha. Nem nos desfiles da Lab de Emicida e Fióti essa sensação foi tão clara. Ajuda o fato de que hoje sobreviveram pouquíssimos veículos especializados grandes.
Cada look que entrava, a plateia vibrava. Gritava. Isso só acontece nos desfiles mais animados, tipo os da Neon, que não existe mais, e os da Amapô. A maravilhosa nova turma da Casa de Criadores, que dá energia e vida para aquele evento, chegou de vez ao SPFW.

isaac-silva-1.jpg

Os primeiros dois looks, em crochê

são uma parceria com Samira Carvalho, essa mulher linda que está desfilando. Samira, que é atriz e modelo, também é dona da marca Sambento

isaac-silva-2.jpg

O outro look foi usado pela outra maravilhosa modelo

e uma das melhores amigas de Samira, Carmelita!

Toda a coleção é branca, com um olho no Réveillon (sim, Isaac adora criar mas também adora vender, sempre foi assim!) e outro na sexta-feira, dia de usar branco. Richelieu, malharia, prata justinho, bordado de pedraria e búzios no algodão e a transparência com brilhos, que Isaac chama de céu de Oxalá. Chamada Acredite no seu Axé, expressão que já faz parte do repertório de Isaac desde antes, a coleção foi apresentada rodeada de ramos de arruda e montes de sal grosso - o público podia levar para casa depois do desfile acabar. Axé total! Uma delícia de energia boa.

Vamos falar mais de roupa? Destaco sempre a Aluf de Ana Luisa Fernandes - é emocionante ver o desenvolvimento dela em tempo real, uma moda que já surgiu cheia de personalidade valorizando tecido nacional e sustentabilidade mais design supercriativo. E que só melhora! Dessa vez Fernandes decidiu deixar o processo mais solto, sem muita teoria e overthinking, pincelando imagens para um moodboard que ela achava que tinham a ver com a marca e com suas vontades. Volumes e a inserção de coisas que normalmente ela nunca teria usado, como o xadrez e o pink, são estimulantes e trazem mais variedade para o repertório da marca ainda jovem, sem perder suas características.

O plástico é resultado de um processo de reciclagem de todo o plástico acumulado em um ano de ateliê. São peças de acervo que não vão ser comercializadas. E reparou nos volumes principalmente dos quadris? Isso conversa com aquela história que eu falei no post sobre a coleção do João Pimenta: masculino nos ombros largos, feminino nas ancas largas. Interessante.

Também tem roupa boa na Neriage, cada vez mais leve, na Angela Brito (que também não consegui assistir ao vivo), na Another Place (que apresentou um curta metragem, mais uma vez nessa onda de experiências no lugar de desfile puro e simples, e que se vê cada vez mais sozinha num line-up com menos marcas dedicadas ao streetwear).
Procure saber.
E chega de falar de SPFW! Mais posts em:
. Coisas que pensei vendo a Modem e a Lilly Sarti
. O meu Ceará na passarela da Amapô
. O novo lesbian chic em João Pimenta

O meu livro preferido do momento é sobre um disco

Para começo de conversa, adivinha: esqueci de mais um disco naquele post dos "10 discos que me fizeram ser quem sou hoje". É esse aqui:

capa-tabua-de-esmeralda-jorge-ben.jpg

(para quem não soube, esse nem é o primeiro disco que lembrei que devia estar lá - explico sobre o disco da Evinha aqui)

A Tábua de Esmeralda foi lançado em 1974 e muita gente o considera o melhor álbum de Jorge Ben. Outros preferem o África Brasil, que eu também gosto, e tem gente que fala de outros tipo Negro é Lindo. E tem gente que junta esse com Solta o Pavão, que também fala bastante da alquimia - como se fosse uma sequência. Em comum, eles possuem uma reafirmação da negritude: é a valorização da positividade e do ser humano no geral mais o resgate e revalorização de uma mitologia negra que na verdade permeia toda a obra de Jorge. Em A Tábua de Esmeralda, cujo nove se refere a artefato lendário que conteria regras herméticas e teria sido escrito pelo próprio Hermes Trimegisto, o artista usa a figura do alquimista como um herói, um exemplo de perseverança, e em várias músicas a negritude fica mais na metáfora do que no plano concreto das palavras. Em outras, é concreta sim: como no exemplo máximo Zumbi.

Existem muitos textos por aí que especulam sobre os significados por trás de A Tábua de Esmeralda. Ele, com outros como Tim Maia e Raul Seixas, buscaram inspiração na espiritualidade para fazer suas músicas nessa época.

Perguntam: quem é o namorado da viúva? Que viúva? E a Magnólia? Estudam Hermes Trimegisto e Paracelso, que é o tal homem da gravata florida, para tentar explicar as coisas.

E aí chegamos ao livro, que é daquela coleção O Livro do Disco, e que não faz exatamente isso.

o-livro-do-disco-a-tabua-da-esmeralda.jpg

Essa coleção tem outros títulos

É inspirada em um projeto gringo e já lançou livros sobre As Quatro Estações do Legião Urbana, Clube da Esquina e outros

Paulo da Costa e Silva não se limita ao A Tábua de Esmeralda, apesar de esmiuçá-lo bem. Ele faz toda uma trajetória para entender a época em que ele foi feito, o contexto em que se insere Jorge, o porquê de Jorge ser tão diferente dos seus contemporâneos (e ao mesmo tempo tão complementar).

Posso estar exagerando, mas aconteceu comigo: na leitura desse livrinho, que é bem pequeno mesmo, você começa a pensar sobre coisas que não esperaria, questões filosofais, as mesmas que o próprio Jorge Ben deve ter pensado na época (ou talvez pense até hoje). Foi bem intenso e interessante lê-lo.

Então, fica essa dica: leia o livro e ouça o disco.