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O russo amarelo que virou popstar: Viktor Tsoi

Desde que vi uma imagem de Viktor Tsoi pela primeira vez, pensei: ele é russo mas é amarelo. Ao mesmo tempo não tinha certeza, porque tem algo nele que estranhamente me lembra o meu amigo Ricardo Domeneck. ??? Então também achava que era algo que eu tinha inventado na minha imaginação fértil.

Mas surpresa, não era: Viktor Tsoi tinha ascendência coreana sim! E ele foi um dos responsáveis pela “trilha sonora da perestroika”. Como se não bastasse, teve um fim trágico, o que o transformou num daqueles ícones que morrem jovens (escapou da sina dos 27 anos: morreu com 28). É estranho que a gente saiba tão pouco dele, mas ao mesmo tempo… O que a gente sabe de cultura pop russa, né?

Pra escrever esse post, decidi assistir ao filme Verão (em russo, Leto), lançado em 2018. Ele não traz exatamente a história inteira de Tsoi mas sim um recorte específico, baseado nas memórias de Natalya Naumenko.

Esses são Mike e Natalya Naumenko

Natalya, que era casada com Mike Naumenko, da banda russa Zoopark, e tinha um filho dele, observou a aproximação de Tsoi, ainda músico iniciante, na turma do rock de Leningrado (na época, São Peterburgo era Leningrado). Viktor e Mike, que era considerado um veterano, com mais experiência e conhecimento sobre o rock, se aproximaram. E Natalya, cujo apelido era Natasha, se apaixonou por Viktor. Acabou falando dessa paixonite pra Mike e chegou a beijar Viktor, mas tudo não passou de uma tensão sexual mal-resolvida, no fim das contas.

No filme, Mike (Roman Bilyk) e Viktor (Teo Yoo)

Ou seja, o recorte do filme está bem no começo da carreira de Viktor Tsoi. Eles retratam como era a cena rock da União Soviética na época – eu sei porque já vi em documentários. Tinha todo um esquemão controlado pelo governo de shows nos quais o povo tinha que ficar sentado paradinho assistindo, aplaudindo só no final das músicas (no longa, as apresentações acontecem no Leningrad Rock Club que abriu em 1981). As letras passavam por censuras prévias. Ao mesmo tempo que os roqueiros eram vistos com maus olhos (afinal, estavam se rendendo à música corrupta do inimigo capitalista), essas manifestações eram quase uma válvula de escape permitida pelas instâncias superiores – meio que um mal necessário, que acabaria existindo mesmo que fosse proibido. E de fato também existia de maneira ilegal, em festas particulares. Aos roqueiros não era permitido ganhar dinheiro com shows, então eles ganhavam em apresentações ilegais e alguns tinham empregos fixos – caso de Mike. Viviam bem pobres no geral e por isso eram quase que forçosamente punks.

Um clique de Viktor fazendo um clique

Bom, chegou a hora da surpresa: como eu estava dizendo, meu intuito ao assistir ao filme era saber mais da história de Viktor Tsoi. Simples assim, sem grandes expectativas.
Caros leitores… Que filme.
Verão chegou a entrar em circuito nacional, distribuído pela Imovision, e está disponível pra aluguel via Google Play. O diretor Kirill Serebrinnikov foi condenado à prisão domiciliar em agosto de 2017, no meio da produção. Dizem que a motivação dessa prisão foi política. Ele não estava presente nas últimas filmagens e coordenou a edição do longa da sua casa.
Verão tem vários trechos musicais. E é musical mesmo, não estou falando só de ator interpretando músico cantando uma canção. Estou falando de pedestre e usuário de transporte público cantando. Estou falando de uma quase coreografia (quase porque na verdade é mais posicionamento e partitura de gestos do que danças). Quem me conhece sabe que não gosto de musicais, mas a partir de agora, quando me questionarem, vou dizer que não gosto de quase todos. Mas Verão, por exemplo, é exceção.
Fica fácil quando as músicas que pintam, fora as de Tsoi e Naumenko, são Psycho Killer (do Talking Heads), The Passenger (do Iggy Pop), Perfect Day (do Lou Reed) e citações declamadas de Call Me (do Blondie). E na verdade perdi tudo mesmo nesse trecho maravilhoso:

(Sim, isso é um trecho do filme)

Uma direção delicada e cheia de energia, umas horas Jules et Jim, outras clipe Bang da Anitta, consegue trazer essa energia da época, essa vontade de pop (e de americanização, vamos falar claro, né) que existia nos últimos anos de poder soviético. Irina Starshenbaum no papel de Natalya está um desbunde, Anna Karina atualizada (ou meio não-atualizada, já que o filme se passa nos anos 1980).

O longa também mostra o encontro de Tsoi com a sua primeira mulher, Marianna Tsoi. Na história do filme, Natalya, cujo apelido era Natasha, dá um empurrãozinho na relação.

Uma coisa que acho muito legal de Verão, uma vez que ele é baseado nas memórias de uma participante dos acontecimentos, é que eles propositalmente misturam realidade e fantasia. Um dos personagens, o Cético (Aleksandr Kuznetsov), faz questão de falar com todas as letras em diversos momentos: “Mas isso não aconteceu". Como nunca fica claro o que realmente rolou, é como se você estivesse acompanhando uma história oral, na qual foi acrescentada uma pimentinha aqui e ali… Do jeito que sempre acontece quando falamos de lendas musicais e turmas de amigos, né?

Cena de Verão: Irina musa no papel de Natalya

Mas OK, voltando ao Tsoi: o filme termina no que parece ser a primeira apresentação oficial da banda que ficou mais conhecida de Tsoi, a Kino (em português, cinema).

A música Когда-то ты был битником ou Uma vez você foi um beatnik, que está no filme, faz parte do primeiro álbum do Kino, de 1982.

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Uma espécie de new wave ainda sem elementos eletrônicos, ela é tosca, meio lou-reediana. Pós-punk raiz.

Tsoi não apenas compunha como chegou a participar de filmes. Em um deles, Assa, de 1987, que virou cult por trazer o rock russo que já pulsava no underground para o mainstream (ou seja, pra telona), Tsoi faz uma versão dele mesmo. Na cena abaixo, ele tenta um emprego como cantor num restaurante. Ao ouvir a lista de exigências da empregadora, ele se enche e literalmente sai andando até encontrar com a sua banda, Kino, e cantar Хочу перемен!
O significado do título da música? “Quero mudanças!” – ela virou uma espécie de hino jovem em meio da perestroika e glasnost.

Foi nas filmagens de Assa que Tsoi conheceu a assistente de direção Natalia Razlogova e se apaixonou. Ele acabou se separando de Marianna, mas eles não chegaram a se divorciar.

Outro filme, dessa vez com Tsoi interpretando o personagem principal, é Igla (1988), considerado o primeiro representante da new wave cazaque (ou seja, do Cazaquistão). Curioso? Segue no link. De nada!

Em 1990, na Letônia, Tsoi morreu num acidente de carro. A investigação chegou à conclusão de que Tsoi dormiu no volante enquanto dirigia numa velocidade de 130 km/h. Não foram encontrados álcool ou drogas no organismo dele. Dizem que teve fã que chegou a se suicidar.
Tsoi já era cultuado – após a morte virou uma lenda. É relembrado nos países ex-soviéticos até hoje.

Encontrei pouca coisa a respeito da identificação de Tsoi enquanto amarelo. Sei que ele gostava de artes marciais e que se espelhava em Bruce Lee – devia ser uma identificação que passava pelo biótipo, claro. Tsoi chegava a ficar imitando movimentos do ator nos filmes pirateados. Em Verão, o personagem faz isso em uma cena.

Mas ele não é a cara do Ricardo Domeneck? #passado!

Tsoi também se arriscava nas artes plásticas. Gosto bastante das coisas que já vi.

Essa moça que está aparecendo nessa penúltima obra é a Joanna Stingray, que foi mulher de Yuri Kasparyan, colega de Tsoi no Kino na guitarra. Stingray é californiana e foi uma das responsáveis pela divulgação do rock soviético fora da URSS na época.

É isso. Ouça Kino.

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