Wakabara

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A setlist do primeiro show solo de Maria Bethânia

A história é a seguinte: nos primórdios, mais especificamente em 1964, o Teatro Vila Velha de Salvador tinha acabado de ser reformado. Eles precisavam estrear algo mas o dinheiro minguou, e a ideia de montar a peça Eles Não Usam Black-Tie precisou ser adiada momentaneamente. Mas o show tem que continuar - e aí? Alguém lembrou de uma turma que se reunia na varanda da Maria Moniz, onde rolava uma sopa pros famintos artistas aos sábados.

Chamaram esse povo e foi montado o espetáculo Nós, Por Exemplo… com bossa nova, músicas antigas, músicas novas (de Caetano Veloso e Gilberto Gil) e a turma que incluía o quarteto que depois seria conhecido como os Doces Bárbaros: Caetano, Gil, Maria Bethânia e Maria da Graça, ainda apelidada Gau e só entre o povo mais íntimo.

Ainda teve um parte-2-o-retorno de Nós, Por Exemplo… e depois finalmente montaram Eles Não Usam Black-Tie. E aí o que aconteceu é que, aproveitando o cenário da peça, criado por Calazans Neto e que simulava uma favela carioca, também foi montado o primeiro show solo de Bethânia. Mora na Filosofia, que entrou em cartaz ainda em 1964, trazia Bethânia cantando, dirigida pelo irmão Caetano, à noite – a peça era apresentada no período vespertino!

Existe, em teoria, um registro do que foi a setlist de Mora na Filosofia. É nele que me baseio pra fazer esse post: o recorte do Jornal do Commercio publicado no Rio de Janeiro em 31/03/1965.

Quem é Hineni Gomes? Não faço a menor ideia. Mas é na palavra dele que a gente vai confiar. Vem comigo.

Pra Seu Governo de Haroldo Lobo e Milton de Oliveira

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O show, em teoria, abria com Pra Seu Governo de Haroldo Lobo com Milton de Oliveira. Onde ela ouviu essa pela primeira vez? Pode ter sido na rua, mesmo. A gravação mais antiga, que eu saiba, é de Gilberto Milfond, de 1950. Essa de cima é talvez a mais conhecida hoje, de Beth Carvalho, numa interpretação mais suave. É do disco homônimo Pra Seu Governo, de 1974 – ou seja, lançada 10 anos depois do show de Bethânia em Salvador.

Canção Espontânea de Caetano Veloso

Começa o mistério: não existe gravação de Canção Espontânea. Não há rastros. Provavelmente essa foi a única vez que essa música foi apresentada, se é que ela existe (ou não passou de uma invenção da cabeça de Hineni Gomes?). A única música composta por Caetano que leva "Canção” no título e que foi gravada, aliás, é Canção de Protesto – o registro é de Zizi Possi no disco Amor & Música, de 1987:

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De Manhã de Caetano Veloso

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Dessa temos registro com Bethânia em si! A gravação saiu em um compacto em 1965, aproveitando o hype do show Opinião no qual ela cantava Carcará (João do Vale e José Cândido). Lado A era Carcará e lado B, De Manhã. Depois, Bethânia revisitaria De Manhã e lançaria versão ao vivo em 2012: o disco era Noite Luzidia e a música virou um dueto entre ela e o compositor, o mano Caetano.

Favela de Hekel Tavares e Joracy Camargo

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Arrisco dizer que a inspiração de Bethânia para cantar Favela foi essa gravação de Maysa de 1962. Mas talvez não: existem gravações anteriores, tipo a de Silvio Caldas de 1952, a de Raul Roulien de 1933, a de Vanja Orico de 1955… Gravação de Bethânia que é bom, nada.

Meu Barracão de Noel Rosa

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Mais uma que tem registro! Meu Barracão é composição de Noel de 1933 e essa gravação saiu em um EP de Bethânia de 1965 só com obras do sambista – Meu Barracão e outras cinco. Muita gente gravou antes, claro. Mario Reis em 1934, por exemplo. Aracy de Almeida, uma das maiores intérpretes de Noel, em 1955. E por aí vai.

A Felicidade de Tom Jobim e Vinícius de Moraes

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Esse registro é mais atual, gravado em 2004 e lançado em 2005, efeméride de 40 anos de carreira de Vinícius. Então qual foi a matriz de Bethânia em 1964? A composição foi feita pra trilha do filme Orfeu Negro do diretor francês Marcel Camus, de 1959. Saiu esse compacto abaixo, na época:

Os Doces Bárbaros já tinham todos sido atingidos pela brisa João Gilberto, que era tranquila, mas com os seus efeitos mais parecia um furacão revolucionário. Só que muita gente fala dos efeitos de João em Gal, Caetano e até em Gil. Na Bethânia, voz de raio e trovão, como pode? Uma prova que quem ainda não ouviu vai se surpreender: a gravação de No Tabuleiro da Baiana de 1981 do disco Brasil, de João com participações de Caetano, Gil… e Bethânia. Talvez a voz de Bethânia nunca tenha sido tão mais suave quanto ali, com João junto. É um assombro de linda.
Será que em 1964, cantando A Felicidade, Bethânia já se suavizava?

Chão de Estrelas de Sílvio Caldas e Orestes Barbosa

Bethânia só iria registrar Chão de Estrelas em 1996 no álbum Âmbar. Por que demorou tanto? Gravada pelo próprio Silvio Caldas em 1953, regravada por grandes vozes como Elizeth Cardoso (em 1957), Maysa (em 1961), Roberto Silva (em 1960), com o tropicalismo Chão de Estrelas virou um exemplo de velha guarda estagnada. Tanto que ela aparece no disco A Divina Comédia dos Mutantes, de 1970, em versão irônica. Caetano nega, daquele jeito dele: não tem essa de velho e novo, pipipipopopó. Sei.
Mas no fundo Bethânia nunca se abalaria por causa disso. Ela, que não quis entrar na dos tropicalistas porque já tinha sido rotulada como cantora de protesto no comecinho da carreira e viu que rótulo era roubada, na verdade já tinha incluído Chão de Estrelas no show A Cena Muda, que foi registrado em disco de 1974. Está ali, no medley entre Maria Maria de Caetano e Sinal Fechado de Paulinho da Viola. Então o lançamento de Âmbar é pioneiro em trazer essa música separada, fora de um medley e em estúdio. Depois, Chão de Estrelas ainda surgia no disco De Santo Amaro a Xerém de 2018, outro registro ao vivo dessa vez ao lado de Zeca Pagodinho.

O Morro (Feio não é Bonito) de Carlos Lyra e Gianfrancesco Guarnieri

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Carlos Lyra era bossa-novista. Mas depois, em 1961, começou a se envolver com o CPC (Centro Popular da Cultura) ao lado de Vianninha (Oduvaldo Vianna Filho, do Teatro de Arena e um dos dramaturgos do show Opinião) e outros. Foi o CPC que mostrou Zé Keti, Cartola, Nelson Cavaquinho, todos esses sambistas do morro pra jovem classe média intelectualizada que já gostava de bossa nova. Isso se refletiu no primeiro disco de Nara Leão, lançado em 1964 pela Elenco, que tinha mais samba que bossa nova.
E Lyra começou a compôr outras coisas, pra além de Maria Ninguém e Se É Tarde Me Perdoa. O Morro (Feio não é Bonito) é um exemplo. Como era uma parceria com Gianfrancesco Guarnieri, o artista por trás de Eles Não Usam Black-Tie, tinha tudo a ver Bethânia cantá-la no cenário da peça.
Mas quem ensinou a música pra Bethânia, antes mesmo dela chegar no Rio pra despontar em Opinião substituindo Nara? Ela mesma: Nara. Ou deduzo que sim: Nara Leão foi pra Salvador e viu Nós, Por Exemplo…, e ao que consta ensinou algumas músicas pro pessoal. Ficou tão impactada com Bethânia que sugeriu o nome da iniciante pra substituí-la, quando precisou sair do Opinião. Portanto… faz sentido, não?

Ave Maria do Morro (Barracão de Zinco) de Herivelto Martins

A gravação de 1942 do Trio de Ouro, formado pelo casal Herivelto Martins e Dalva de Oliveira mais Nilton Chagas, virou um clássico. Claro, pintaram outras: a própria Dalva regravaria, além de gente como Nelson Gonçalves (em 1950) e Ângela Maria (em 1955).

Não existe gravação na voz de Bethânia. Nem no Cânticos, Preces, Súplicas de 2004, dedicado à Nossa Senhora, ela incluiu a faixa. Já Gal Costa gravou: a música fez parte de muitos dos seus shows e, finalmente, em 2003, no disco Todas as Coisas e Eu. Talvez por isso que no ano seguinte Bethânia evitou incluí-la no seu lançamento com músicas pra Mãe de Jesus. Gal ainda lançaria uma versão ao vivo no disco Live At The Blue Note, gravado em 2006.

Acender as Velas de Zé Keti

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Coisas assim me fazem pensar o que aconteceu na real.
A história oficial diz que Nara conheceu Bethânia em Nós, Por Exemplo…, gostou da turma, ensinou umas músicas e foi embora pra fazer o Opinião.
Mas então ela já teria ensinado pra Bethânia uma música que faria parte do repertório do Opinião… antes de tudo?
Acho tão esquisito. Mais do que destino, me cheira a "tava tudo combinado".

Quem lançou essa música de Zé Keti primeiro na verdade nem foi Nara, no disco Opinião que também era de 1964, e sim Neyde Fraga com Walter Wanderley. Numa pegada bem… bossa nova, diga-se de passagem. Zé Keti foi um dos artistas do morro que viraram "moda” via CPC, como eu disse mais acima. Acontece – até hoje, aliás…

Enquanto a Tristeza Não Vem de Sérgio Ricardo

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Outra que deve ter sido ensinada por Nara, ou que era fresquinha, recém-lançada em álbum. O disco Um Sr. Talento de Sérgio Ricardo sairia em 1964 mesmo. As baianas do Quarteto em Cy gravariam a versão delas no mesmo ano, pro disco homônimo Quarteto em Cy. Sérgio também era bossanovista, também se envolveu com o CPC. Nos anos 1970, virou maldito (vira-se maldito? Nem sei!).
Sérgio foi infectado com COVID-19, se curou mas seguiu internado e acabou morrendo no hospital em julho de 2020 de insuficiência cardíaca.

Bethânia nunca gravou a música.

Ao Voltar do Samba de Synval Silva

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Do repertório clássico de Carmen Miranda, de 1934, foi uma das canções da safra de Synval Silva que a cantora gravou (também tem Adeus Batucada, um dos maiores hits). Bethânia não gravou, e a interpretação dela deve ser ótima! Queria ter ouvido!

Onde Estão os Tamborins de Pedro Caetano

O meu palpite é que Bethânia ouviu essa música no rádio ou num samba de roda na rua. A música que fez muito sucesso no Carnaval de 1947 é de Pedro Caetano, o mesmo de É Com Esse Que Eu Vou, que em 1973 apareceu no repertório de Elis Regina. E é boa mesmo, mas não tem gravação de Behânia. Tem uma de Célia, de 1975!

Foi Ela de Ary Barroso

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A música lançada por Francisco Alves no Carnaval de 1935 é de Ary Barroso. Não existe gravação com Bethânia conhecida – porém, mais uma vez, existe… com Gal. Ela gravou pro songbook que foi lançado em 1994, com o violão de Luiz Brasil.

Lata d'Água de Luiz Antônio e Candeias Jota Júnior

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Marlene soltou sua versão de Lata d’Água de Luiz Antônio e Candeias Jota Júnior em 1952. Com toda a temática de morro e favela do show de Bethânia, tinha tudo a ver. Depois, a interpretação de Elza Soares viraria um clássico contemporâneo. Saiu no Beba-me Ao Vivo de 2007 da cantora.

Mora na Filosofia de Monsueto e Arnaldo Passos

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Finalmente a canção que dava nome ao espetáculo. Amo esse samba! A gravação de Bethânia saiu em seguida, em 1965, no seu primeiro álbum. É mais uma música lançada por Marlene, essa em 1954. Eu adoro! Quem a retomaria? Caetano, no disco Transa de 1972. A pegada dele ficou mais dark, como o resto do álbum, feito no contexto do exílio londrino. Acho que a escolha de Caetano também deve ter tido a ver com a saudade de Bethânia.
Depois, Bethânia a lançaria no meio de um pout-pourri desses que ela curte no disco Nossos Momentos de 1982 – esse acima.
Monsueto é incrivel. Ouçam mais Monsueto.

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