Midsommar: como um filme tão perturbado pode ser tão bonito?

Vi que o diretor Ari Aster, o mesmo de Hereditário, disse que Midsommar: O Mal Não Espera A Noite na verdade não é bem um terror, mas um filme sobre término de relacionamento disfarçado de terror.
Bom, não é bem assim: ele usa diversos elementos do terror, mas é um terror, digamos, diferente. Lembra que falei do pós-terror aqui?

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O filme que estreou essa semana em SP traz como protagonista Dani (Florence Pugh), que logo de cara passa por um trauma absurdo. Ela namora Christian (Jack Reynor), e ele está infeliz no relacionamento mas ao mesmo tempo não consegue se desvencilhar e terminar principalmente porque sabe que Dani está num momento difícil. E aí surge a oportunidade de uma viagem para a Suécia: Pelle (Vilhelm Blomgren), um amigo da universidade de Christian, chama o pessoal para participar do festival de solstício de verão na sua comunidade natal, a fictícia Hårga.
Não quero dar spoilers, então vou ficar mais na superfície e comentar o que achei do filme em linhas gerais.
Vou fazê-lo em formas de tópicos.

. A justificativa de que uma prática é cultural e portanto devemos respeitá-la é válida até que ponto? Vou usar um exemplo que não tem nada a ver com o filme: existe a lei islâmica de que a sentença do ladrão é cortar-lhe a mão. Uma prática horrorosa. Mas não é parte da cultura? Quem delimita o que pode ou não ser praticado na cultura de um povo?
Outra questão relacionada: as semelhanças entre um culto contemporâneo e o povo que a gente vê retratado em Midsommar são inegáveis, do alucinógeno ao isolamento do resto do mundo. Mas por que uma visão mente aberta e antropológica insistiria em ver isso como algo diferente, só porque é em um país "diferente"? Digo isso porque logo no começo do roteiro já fica claro que os personagens americanos homens estudam antropologia.

. Assim como Nós de Jordan Peele, Midsommar tem momentos de coralidade que esteticamente são muito atraentes e na metáfora dão uma sensação de estranhamento (coralidade no sentido de coral e coro). Só que em Midsommar o sentimento é mais misto: existe a questão da anulação do indivíduo em prol do coletivo, mas também da sensação de pertencimento, de acolhimento (coisa que a protagonista Dani não está sentindo da parte de Chris). O sofrimento é coletivo; a alegria também.

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. A direção de arte é impecável. A ressignificação da coroa de flores, caso o filme faça sucesso, vai ser um babado no próximo Halloween. Tem algo nesse terror psicológico de agora, novamente citando Nós e também The Handmaid's Tale, que trata o figurino com muito refinamento: o uniforme tanto como elemento da comunicação visual essencial da obra (aquela roupa vira um símbolo do filme ou da série) quanto como peça-chave da narrativa (nos 3, é importante essa identidade coletiva representada na roupa, forçada ou não). Dá para a gente começar a viajar nessa questão comparando com as blogueiras e seguidoras uniformizadas, mesma cara, mesmo cabelo, mesma roupa; e também de movimentos contrários a isso, valorizando o individual, como a passarela da Gucci e, recentemente, de Marc Jacobs.

. Não é só: o visual de Midsommar como um todo, a construção da vila… Muito bem feito. Aster criou toda uma mitologia sobre Hårga - até o alfabeto rúnico é na verdade inventado, assim como a língua, a ficcional Affekt. Para quem quiser saber mais, tem uns links bem legais, mas tudo com spoiler, cuidado: o Bustle se perguntou sobre o significado das runas; e o mesmo Bustle também quis saber mais sobre as pinturas nas paredes e tecidos, naïf e sinistras; enquanto o LA Times mergulhou em diversas perguntas, desde a criação de Hårga até elementos do roteiro.

. Vale a pena assistir? Para mim supervale, o meu marido achou chatíssimo. É um filme sobretudo muito caprichado do ponto de vista estético, e que acho que traz questões importantes em si.

Mas que terror: a moda ainda não alcançou o cinema

A última coleção da Moschino, de resort 2020, foi desfilada em Hollywood e apostou no terror como inspiração.

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Oh, dear

Is my make-up that bad?

É uma coisa bem caricata, bem engraçada, com momentos, adivinha… guro kawaii (saiba o que falei sobre o guro kawaii nesse link). Tem mais fotos aqui nesse link do Fashionista e também divido com vocês o vídeo abaixo.

Olha a drag Violet Chachki dando um susto na Aquaria e na Pabllo Vittar! Risos!

Mas tanto a Moschino quanto outras marcas, tipo a Prada, estão apostando no terror antigo, o vintage, o do que os críticos especializados chamam de jump scare.

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Prada fall 2019

Com toque de noiva de Frankenstein

Aproveite para ver mais dessa coleção da Prada com texto da super Suzy Menkes aqui. Aproveito para deixar uma citação da própria Miuccia Prada tirada desse texto:

I would say that it reflects the current world, where there is a lot of danger, a lot of fear, a lot of war around us. Romance is an idea of opportunism, of good will, and of good sentiment – the opposite of fear. This is about love stories and introducing something positive. Romance means ideas.
— Miuccia Prada para Suzy Menkes

Medo. Pulo de susto. Já temos tudo isso na vida real atual. Mas poucos desfiles dessa onda fashion de terror acompanharam o chamado pós-terror, tendência atual dos cinemas. Escrevi sobre o terror da moda no site da Lilian Pacce em abril, mas antes de ter feito essa reflexão. Agora, penso que quatro dos poucos que já deram esse clima pós-terror, mais para o arrepio surreal do que para o grito primal, são…

Marc Jacobs spring 2014, precursor total. Uma trilha densa e uma sensação de que algo está para acontecer - mas não acontece!

A Calvin Klein de Raf Simons e seu “estado de emergência” com roupas para o apocalipse (faixa refletiva, balaclava, remendos) do fall 2018 (veja aqui), culminando na coleção de spring 2019 que homenageava um clássico do cinema, Tubarão, mas o juntava com outras coisas, como A Primeira Noite de um Homem, e suspendia o susto, transformando o clima de terror no desfile em algo mais psicológico, uma permanente sensação da eminência da tragédia, as águas da parede à espreita.
E no fim deu-se a tragédia fashion: essa foi a última coleção de Simons para a CK, e a marca anunciou que não vai mais fazer desfile.

Rick Owens fall 2019: o bizarro sempre esteve no terreno de Owens, circundando seu universo criativo. Pós-terror na veia.

Gucci fall 2018, que ficou famoso por causa da cabeça-acessório - risos risos risos. O estilista Alessandro Michele, que me parece um freak nerd que adora ficção-científica e filme B, depois também fez um desfile em Arles de cruise 2019 num cemitério, que também tem a ver com esse clima mas puxa mais para o assustador-padrão. Vale a menção de qualquer forma e o desfile é bem bom - assista no link.

Bom, você está viajando nesse papo de pós-terror? Eu também estava, e aí ouvi esse podcast:

Agora chegamos na pergunta de ouro: por que a moda ainda não engatou nesse pós-terror? As possibilidades são várias, mas eu tendo a ficar em duas:
. A moda de luxo, essa que vai para a passarela, ainda não conseguiu no geral processar essa ideia do pós-terror que está intimamente atrelada a soluções inventivas de trama e efeitos especiais em baixo orçamento. Eles não trabalham com baixo orçamento, e nem precisam. Um pode (e talvez deva) apresentar opulência. Outro tem que quebrar a cabeça para fazer um roteiro ótimo que caiba numa quantidade de dinheiro diminuta. Universos bem díspares.
. O pós-terror discute questões da sociedade que a moda no geral não quer discutir ou, quando discute, prefere usar de outros tipos de metáforas; acha que não precisa recorrer às ferramentas do terror para falar dessas questões.

Pensando bem a moda e o terror são vistos de maneira muito parecida. Ambos são considerados escapistas. Ambos são, no fundo, retratos da realidade e usam artifícios para representá-la de maneira mais criativa.

Minha lista pessoal para você que quer saber mais do pós-terror do que do terror fashion…

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Suspiria

A nova versão é tão fashion (de um jeito diferente) quanto a primeira

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Nós

Ao lado de Wild Wild Country, esse longa nos diz que usar vermelho é bizarro - e a gente quer usar mais ainda!

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Hereditário

Toni Colette: melhor que Olivia Colman, que Glenn Close e todo o mais. Se liga, Academia!

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Boa noite, mamãe

O futuro está nas mãos da nova geração…

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Corrente do Mal

Um nome horroroso para um filme incrível: uma atualização dos filmes adolescentes de terror dos anos 1980

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The Babadook

Não faça como eu, não demore tanto tempo para assistir Babadook caso ainda não tenha assistido. Não é o que você está pensando, garanto!