Não publiquei nada sobre Euphoria ainda mas meus amigos fizeram isso por mim

Esse turu turu turu dos Mutantes

O livro Discobiografia Mutantes da jornalista Chris Fuscaldo me contou, entre outras coisas, que a música Dois Mil e Um de Rita Lee e Tom Zé conta com viola, sanfona e voz de Zé do Rancho e Mariazinha.
Sabe quem são?

ze-do-rancho-e-mariazinha.jpeg

“Ah, mas essa música eu conheço, é de Sandy & Junior!"
Mais ou menos - a música foi gravada por Sandy & Júnior no segundo álbum deles, Sábado à Noite (1992). E se chama A Resposta da Mariquinha, que é praticamente uma sequência de outra…

Sim, essa é Noely Pereira de Lima, mãe de Sandy e Júnior com Xororó. Noely é realeza sertaneja, meu bem: ela é filha de Zé do Rancho e Mariazinha! Ela nunca cantou profissionalmente, mas arriscou no vídeo acima Maria Chiquinha com Serginho Groisman (?!) no aniversário do Programa Livre (aveee) em 1998! Maria Chiquinha, ao contrário de A Resposta de Mariquinha, era do repertório de Zé do Rancho e Mariazinha mas não era de autoria de Zé - foi composta por, segura essa pororoca:
Geysa Bôscoli, que era sobrinho de Chiquinha Gonzaga e tio de Jardel Filho e Ronaldo Bôscoli, portanto tio-avô de João Marcelo Bôscoli (!!!!)
&
Guilherme Figueiredo, irmão de João Figueiredo, o último presidente da ditadura militar brasileira (!!!!!!!)

É mole?
Meu marido foi no show da volta de Sandy & Junior e me contou: eles não cantam essa música. Pegaria mal, mesmo - ela é bem machista.

Bom, imagino que você já tenha feito as contas nesse momento.
Dois Mil e Um teve a participação chiquérrima dos avós maternos de Sandy & Júnior em sua gravação no álbum homônimo dos Mutantes de 1969.
Durma com essa!

Não sei nem por onde começar a falar de Bacurau

Ou melhor, sei: se você tiver só um dinheiro para ir ao cinema e está em dúvida sobre ver o filme novo do Tarantino ou Bacurau, eu decido pra você. ASSISTA BACURAU.

bacurau.jpg

Já deixei bem clara a minha opinião sobre Era uma vez em… Hollywood aqui em post anterior.

Tem uma fala que amei de Aquarius, filme anterior de Kleber Mendonça Filho que, confesso, só assisti recentemente. É da cunhada de Clara (Sônia Braga), Fátima (Paula de Renor), comentando sobre a empregada da família que roubava as joias. É algo do tipo "É assim, a gente as explora, elas nos roubam". Ela diz em um tom de corte, para acabar a conversa logo, como se não gostasse do rumo da prosa. Em Bacurau, também comenta-se um modus operandi à essa moda.
Tem me incomodado essa questão da violência do país que a classe média e a classe alta me parece que vê como se fosse um problema do qual ela não participa. A violência existe, surgiu na cidade, no estado e no país em que você vive; você se coloca nessa problemática puramente como vítima - quando infelizmente acontece com você - e nunca enquanto agente participante da sociedade na qual a violência existe.
E, ademais, sai do país porque “a violência está impraticável".

Como cobrar uma sociedade pacífica?
Todos somos iguais perante a lei - só que mais ou menos. “O meu primeiro".

Depois desse meu arroubo, queria deixar claro para quem não assistiu Bacurau que, apesar de todos os subtextos que você pode enxergar, não é necessariamente um filme que você precisa assistir pensando neles, lendo nas entrelinhas. Ele tem toques de faroeste e filme de ação. Tem também toques de filme de cangaço. Aliás, você sabia que o filme O Cangaceiro (1953) de Lima Barreto gerou uma moda cangaceira internacional, tão forte foi seu impacto? As mulheres piraram no estilo e pegavam elementos dele para os seus looks. Imagina Joan Crawford com couros todos trabalhados no bordado?

o-cangaceiro.jpg

Como Bacurau é muito perto da gente, não dá para reparar no que existe de mais regional e estilizado. Para os nossos olhos brasileiros chega a ser bem realista, na verdade. Em matéria de figurino, existe o momento dos motociclistas com seus neons supermodernos, da cidade grande, deslocados no sertão, e Lunga (Silvero Pereira), com seus anéis que remetem a Lampião e a sua "pintura de guerra": um megahair! Vi gente lendo Lunga como um personagem de sexualidade ambígua porque, na origem, de acordo com o roteiro, era mesmo pra ele ser trans. Pode ser viagem minha, mas acho uma leitura simplista da interpretação do Pereira, prima da leitura que defende que os cangaceiros de Lampião tinham tendências homossexuais porque se enfeitavam, perfumavam e costuravam. No filme puro e simples, entendi Lunga como estiloso, uma figura diferente. Talvez eu que esteja errado!

No mais, algumas outras coisas que você, que assistiu ou não Bacurau, pode prestar atenção e refletir sobre:
. A honra ambígua de Michael (Udo Kier)
. O jeito mais solto de encarar a sexualidade do povoado
. O uso do psicotrópico, que nos faz pensar: o que realmente aconteceu? Será que a narrativa estava sob efeito alucinógeno?
. O jeito maroto que a narrativa lida com o preconceito do sudeste contra o nordeste
. O sadismo é uma característica intrínseca da humanidade? Talvez maior que a vida social?

Mais não falo, acho até que já dei spoiler demais.

Ah, e Aquarius, hein?
Achei bom, também. Mas acho que Bacurau se sustenta mais sem subtexto. Aquarius precisa do subtexto da crítica para a classe média alta intelectual que se vê tão bem resolvida, do subtexto da especulação imobiliária (que aqui é apresentada prejudicando mais a classe média alta, e não a classe baixa). Ou se vê o filme mais como um show de interpretação de Sônia Braga do que qualquer outra coisa - por mim, tudo bem!

aquarius.jpg

Empolguei depois desses dois e acabei assistindo 3 curtas de Kleber Mendonça Filho espalhados pela internet (em simples busca você acha). Vinil Verde, Eletrodoméstica e Recife Frio são bem bacanas, recomendo, especialmente o último, que imagina uma espécie de frente fria eterna em Recife. É uma trama meio prima da A Jangada de Pedra de José Saramago, que fala sobre a ficcional separação geográfica da Península Ibérica do continente: ela vira uma ilha e começa a "navegar” o mar. Doido, né? Assim como em Ensaio Sobre a Cegueira, Saramago desenvolve a história com apenas um acontecimento esquisito e sem explicação e seus desdobramentos, realistas na medida do possível.
Recomendo tudo isso, na verdade! kkkk Você assiste Recife Frio abaixo:

ATUALIZAÇÃO em 9/09/2019: Esse artigo do Nexo é bem incrível, fala de várias referências do Bacurau e traz outras camadas de leitura para o longa. Recomendo fortemente!

As ilustras de Elifas Andreato em capas de disco

Elifas Andreato talvez não seja um nome que você ligue a uma obra logo de cara, mas se você gosta um pouco de música brasileira você provavelmente já se deparou com alguma coisa criada por ele. É que Elifas é um artista que fez MUITA capa de disco para a MPB, e quando eu digo MUITA você realmente tem que acreditar.

Tem exposição do trabalho do Elifas em cartaz no Museu Afro Brasil até 5/10/2019, e eu aproveito para mostrar algumas das capas que ele já criou abaixo. Confira!

clara-nunes-nacao.jpg

Nação (1982)

De Clara Nunes

martinho-da-vila-canta-canta.jpg

Canta Canta, Minha Gente (1974)

Martinho da Vila

criolo.jpg

Espiral de Ilusão (2017)

Criolo

paulinho-da-viola-nervos-de-aco.jpg

Nervos de Aço (1973)

Paulinho da Viola

Adoniran-Barbosa-e-convidados.JPG

Adoniran Barbosa e Convidados (1980)

Adoniran Barbosa

elis-regina-luz-das-estrelas.jpg

Luz das Estrelas (1984)

Elis Regina

clementina-de-jesus.jpg

Clementina, Cadê Você? (1970)

Clementina de Jesus

tom-ze-estudando-o-pagode.jpg

Estudando o Pagode (2005)

Tom Zé

a-arca-de-noe.jpg

A Arca de Noé (1980)

Toquinho, Vinícius de Moraes e mais um timão

joao-nogueira.jpg

Wilson, Geraldo, Noel (1981)

João Nogueira

gonzaguinha.png

Gonzaguinha Presente - Duetos (2015)

Gonzaguinha, disco póstumo

rosinha-de-valenca.jpg

Cheiro de Mato (1976)

Rosinha de Valença

(Aliás, recomendo fortemente a visita ao Museu Afro Brasil - e com tempo, para ver tudo, é MUITO legal)

Finalmente um filme sobre um cantor que realmente quero assistir

Esqueça o filme do Elvis.
Esqueça o filme do Bowie.
O filme que você também quer está mais próximo do lançamento que você pensa. Aliás, ele já estreou - em Portugal. E não sei se chega aqui mas já estamos trabalhando com torrent - por favor me mandem.
Você conhece o António Variações?

Pouca gente conhece Variações no Brasil - ele ainda é algo a ser descoberto por essas praias. Compositor português que lançou álbuns no começo dos anos 1980, era barbeiro. Depois do lançamento de dois ótimos álbuns, ficou muito doente. Morreu vítima de uma broncopneumonia em 1984 que, especula-se, era decorrente da Aids. Em Portugal o artista é mais bem lembrado - vide filme recém-lançado que, em uma semana em cartaz, já é o filme português com maior bilheteria do ano.

Antonio-variacoes.jpg

Não são só as músicas de Variações que impressionam. O apuro visual também é incrível - ele já sabia, na Lisboa da época, que era importante ter um trabalho em imagem para além da obra musical no mundo pop. São fotos e vídeos que impressionam até hoje. Além da música, Variações é ícone queer.

Antonio-variacoes-2.png

Com um pouco de esforço, dá para fazer um paralelo entre Ney Matogrosso no Brasil na década de 1970 e Variações em Portugal na década de 1980. O país passou pela Revolução dos Cravos um pouco antes, em 1974; depondo a ditadura do Estado Novo de décadas. A Assembleia Constituinte de 1976 garantiu a democracia - o processo todo também inclui a independência das colônias portuguesas na África. Ou seja, António aparece num processo de abertura e democratização; Ney era provocação pura no Secos & Molhados e depois solo, numa sociedade que ainda passava pela ditadura militar e só veria o movimento de Diretas Já quase 10 anos depois.

antonio-variacoes-3.jpeg

Vamos às músicas de António, então: no primeiro álbum, Anjo da Guarda, tem uma das minhas preferidas. Chama-se O Corpo é que Paga - esse clipe abaixo tem um minuto inicial do clipe original e o resto é uma edição de um fã.

A letra tem duplo sentido e é simplesmente mara: “Quando a cabeça não tem juízo / Quando te esforças mais do que é preciso / O corpo é que paga / O corpo é que paga / Deix'ó pagar, deix'o pagar / Se tu estás a gostar...” E depois segue falando de ansiedade, estresse e seus efeitos na saúde, até comer compulsivamente (“Quando a cabeça está nessa confusão / Estás sem saber que hás-de fazer e ingeres tudo o que te vem à mão / O corpo é que fica / Fica a cair sem resistir"). Em 1982!
O mesmo álbum também traz É P'ra Amanhã:

Mais uma que ainda vale para hoje, fala de como a gente continua vivendo sem fazer o que realmente queremos: “Foi mais um dia e tu nada viveste / Deixas passar os dias sempre iguais / Quando pensares no tempo que perdeste / Então tu queres mas é tarde demais".

Depois, António lança Dar & Receber em 1984. Também adoro. Tem, por exemplo, a Canção de Engate:

Tu que buscas companhia
E eu que busco quem quiser
Ser o fim desta energia
Ser um corpo de prazer
Ser o fim de mais um dia
"

Podia ser uma simples música de amor, mas a gente não consegue desassociar o próprio Variações da letra; então é lógico que a gente acaba lendo uma jogo de sedução entre ele e alguém que ainda pode estar em dúvida em relação à sua sexualidade.
É essa música que Filipe Catto gravou no seu álbum Catto (2017).

Fique com mais umas imagens de Variações pois nunca é demais:

ATUALIZAÇÕES 21/05/20, às 14h:
Bom, continuo viciado.
A novidade é que consegui assistir ao filme (tem alguns torrents suspeitos e também no YouTube, mas provavelmente vai cair a qualquer momento, subiram em abril).
O filme não é perfeito, mas é lindo, uma história cheia de sonho e afeto. Num contexto de pandemia, a trama também ganha outras camadas de leitura.
Resumindo: assistam. Procurem. Vale a pena.
(Obrigado para a Beatriz, que chegou nesse post e me mandou um e-mail, pelo incentivo! <3)

Quem gostou desse post talvez também goste desses outros:
. A banda Humanos, que foi formada para gravar canções perdidas de António Variações
. Conan Osíris é o novo António Variações?
. A Legião portuguesa, que não é Urbana e é a Sétima
. A canção de protesto portuguesa contra a energia nuclear