O lado dark do kawaii
Esse post faz parte de uma sequência! Deixo a lista abaixo - recomendo que você leia esses textos antes desse:
. Memória afetiva
. O que é kawaii?
. A rainha & a embaixadora do kawaii
Já leu? Então vem!
Que gracinha!!! Mas espera… ele está comendo um ser-humano?
Sim, estamos aqui para falar dos lados mais obscuros do kawaii. Esse de cima, por exemplo, faz parte do guro kawaii, que mistura referências fofas com o grotesco. O Gloomy Bear é obra do designer Mori Chack e ele faz isso mesmo que você está vendo: machuca, e muito, o seu dono Pity.
“Não estou interessado em somente desenhar personagens fofos; quero criar algo que vai fazer o seu coração pular.”
Mas esse lado mais sinistro de algo a princípio tão infantil não é um movimento tão contemporâneo. É só tomar como exemplo o ero kawaii, também chamado de erokawa…
Ai, jura?
Desenho do Ado Mizumori, artista precursor do erokawa, que faz essas figuras infantis e… meio sensuais? Affff! Bizarro! E elas apareciam em papéis de carta!!!
A cantora Koda Kumi, que começou a carreira em 2000, se autodenomina uma seguidora do erokawa. Nada muito diferente das cantoras pop sexualizadas da década, né?
Bom, outro artista que mexe com imagens kawaii e clima grotesco-bizarro é o Shintaro Kago, que eu por sinal gosto muito! Dá uma olhada…
É o tipo de coisa que eu penduraria na parede em casa? Hum, não exatamente…
Existem várias referências desse kawaii menos ingênuo, com toques de bizarrice. Vou levantar algumas das mais famosas aqui. Vem comigo:
Tokidoki
Ela na verdade não é uma marca japonesa, como as pessoas costumam imaginar. Foi criada na Califórnia e seu principal designer, Simone Legno, mistura o kawaii com referências mais agressivas como caveiras e spikes. Acabou adorada no Japão também!
Guro lolita
A subcultura das lolitas não é mais tão forte no Japão mas ainda existe. E além das goth lolitas existem as guro lolitas. Que tal? Vai um kawaii zumbilândia para hoje?
Essa de cima é a Kyary Pamyu Pamyu, que surfou na onda do kimo kawaii (que em tradução porca quer dizer fofinho assustador). O disco é de 2013 - ou seja, com uma estética bem influenciada por Lady Gaga, que lançou The Fame Monster em 2009 e Born this Way em 2011. Musicalmente é j-pop contemporâneo normal.
O Kobito Dukan é horroroso, não consigo me conformar que ele virou algo bacana no Japão. Tem até capinha de celular do Kobito Dukan. Socorro!
E eu posso provar
Que coisa horrenda! Pior que o Funassyi. E eu ODEIO o Funassyi. Nem vou colocar foto do Funassyi aqui porque acho um ACINTE a existência desse treco!
MonsterGirl
Criação de Shigetomo Yamamoto, tipo uma prima da Monster High só que japonesa
E sabe aquele bonequinho bebê que é até tema de tatuagem old school?
Kewpie e o Japão tem uma longa história de amor. Quando um pessoal decidiu produzir maionese no país, lá pela década de 1920, eles queriam agradar - afinal, o japonês nunca tinha visto maionese na vida, não era algo familiar. Então eles colocaram a figura de um bonequinho que estava muito popular na época estampado na embalagem. Em 1957, a fusão estava completa: a maionese passou a se chamar Kewpie oficialmente. E os comerciais? Hum, são MARAVILHOSOS. Esse de baixo é de um tempero da mesma marca, que foi batizado de Tarako. Ao dar o play, você se responsabiliza por conta própria: é um jingle bizarro que vai ficar na sua cabeça por pelo menos dois dias.
Creepy! Foto da entrada de uma fábrica da Kewpie Mayonnaise que agora não fica mais aberta para turistas
Obs. jogada no meio do texto: não incluí 6% Dokidoki aqui nesse post porque não considero guro kawaii. Está mais para um kawaii com cores fortes. Sorry, Monster Cafe…
Hangry & Angry
Eles são esses personagens da imagem e também uma marca de roupa da designer Gashicon. As peças (e os bonecos) podem vir com uns respingos vermelhos…
A artista Junko Mizuno
Essa mulher é maravilhosa. O trabalho dela é maravilhoso. Idolatrem essa mulher comigo!
“Gosto de desenhar criaturas e animais fofos. O que rejeito é desenhar meninas kawaii só para atrair japoneses que querem garotas que sejam sensuais e inocentes-ignorantes ao mesmo tempo. Amo desenhar mulheres sensuais, mas é algo para mim, não para atrair homens. (...)
A cultura [do kawaii] é tão complicada que é difícil para eu entender, mesmo nascida e criada no Japão. Ouvi que bebês inconscientemente usam sua fofura para conquistar a atenção das mães. Acho a fofura dos bebês e a fofura que as japonesas usam para atrair homens totalmente diferentes.”
Girl power!
Seguindo esse raciocínio, acho que a Junko faz essas suas figuras serem assustadoras de propósito, para meterem medo nos homens. Yasss!
Breve parênteses: quando fui para o Japão pela primeira vez o AKB48 , uma banda formada por 48 garotas, já era um sucesso. Em Akihabara (o nome da banda vem desse bairro de Tóquio), já estava aberto o café do AKB48. Não sei se ele ainda existe.
Sentei lá com o Pedro por curiosidade. É tudo temático - o cardápio, o porta-copo, os cartazes. Em um telão bem grande, ficam passando clipes com as meninas. Acho que às vezes rola apresentação ao vivo delas.
E o público? Homens de meia idade. Os chamados salary men. É… Esquisito? Você não viu nada: assista Tokyo Idols, tem na Netflix.
Fecha parênteses!
Na mesma pegada de subversão do kawaii na arte da Mizuno mas não exatamente com esse viés mais feminista, existe o movimento New Pop ou Superflat. O nome não pegou, mas um de seus artistas e seu manifesto superflat, que prega o fim da divisão entre alta e baixa cultura japonesas (ou seja, a cultura sofisticada à Quioto da cerimônia do chá e dos salões fechados e o contraponto dos mangas, animes, games e fancy goods da indústria de entretenimento), ganhou fama internacional. Na verdade, mais internacional do que nacional: Takashi Murakami é considerado genial por muita gente fora de casa, mas o Japão em si não liga muito para ele. Será que é porque ele subverte signos do kawaii de maneira provocadora, a ponto deles ficarem assustados?
Tan Tan Bo a.k.a Gerotan: Scorched by the Blaze in the Purgatory (2018)
Murakami é bem conhecido por sua parceria com a Louis Vuitton e pelas suas obras com flores. O caráter bem comercial de algumas de suas obras incomoda bastante gente - meio que na mesma pegada de Romero Britto. Mas eu acho sinceramente que ele consegue ser bem mais profundo em suas propostas, e mesmo o fato de transformar seu trabalho em fancy goods é uma espécie de subversão do sistema.
E me diz: por que o Murakami é uó e a Yayoi Kusama, que também é bem pop e também já fez colab com a Vuitton, não é?
Murakami em si na Gagosian Gallery
Essa foto de 2011 saiu desse artigo do Observer
E essas são duas das minhas obras preferidas de Murakami
Hiropon (1997) e My Lonesome Cowboy (1998). Sim, é uma mina com umas tetas gigantes saindo leite e um boy esporrando. Não seja careta! Você está ficando vermelho?!
Gosto dessas obras porque elas mostram a sexualização do kawaii, como se esfregasse na cara do Japão que não adianta parecer infantilizado e asséptico em relação a sexo porque as subculturas do hentai (o manga e anime eróticos) e outros fetiches continuam ali, prontos para emergir.
Na mesma turma de Murakami, vários outros artistas fazem movimentos parecidos. Vamos a eles:
Yoshitomo Nara
Que eu gosto tanto quanto ou até mais que o Murakami!
Quem resiste
a essa carinha sinistra? Yoshitomo, você é o cara
MR., aqui na frente de uma de suas obras, trabalha com a estética exagerada da cultura otaku - fonte da foto é o Hypebeast
Making Things Right (2006), de MR. - e sim, você está vendo a calcinha
Mariko Mori já fez exposição em CCBB aqui no Brasil e tem umas viagens sensoriais futurísticas - o kawaii entra como subtexto e talvez até inconscientemente, já que ele está tão enraizado na cultura japonesa
Rising, Floating Energy and Flowers (2013)
Obra de Aya Takano, que tem um ar kawaii old school mas traz um clima de mistério e sensualidade nas suas obras
Belíssima essa obra da Takano, né?
“Tenho uma paixão real por aquarela, pincéis e papel de desenho. Comecei com aquarela, aí experimentei pintura a óleo no Ensino Médio, aí abandonei isso aos 19 anos para tinta acrílica, que é mais próxima da aquarela na tela. Depois de 11/03/2011 [a data do acidente nuclear em Fukushima], chocada, comecei a recusar as coisas que não são naturais. Meu paladar mudou e meu jeito de vestir também. A tinta acrílica não era mais bacana, então voltei para a tinta a óleo.”
Miss Maid (2002) de Shintaro Miyake
Obra do Yosuke Ueno - que me lembra um pouco a pegada da Nina Pandolfo! As coisas dela são bem kawaii, você não acha?
Obra da Chikuwaemil, sempre com uma explosão de cor
E finalmente a Hello Kitty do mundo bizarro, obra de Yoskay Yamamoto
On Our Way Home (2015), do Yoskay Yamamoto. Também acho o trabalho dele foda! E você, de qual gostou mais?
Bom, espero que vocês tenham gostado desse post interminável! Agora é hora de segurar para a próxima parte dessa sequência, na qual vou falar de um bairro que virou um mito. Um mito maior que Pinheiros, que o Soho nova-iorquino, que Shoreditch… e talvez equivalente a Copacabana, ocupando um espaço cultural que os outros só sonham e nunca vão conseguir.
Adivinhou? Se ainda não conseguiu… acho que você precisa ouvir mais Gwen Stefani.
