A estética do improviso

Não sei se ficou claro, mas existe o que alguns podem considerar crise estética em curso no mundo hoje.
* ALERTA POLÊMICAAA, ELA ESTÁ POLÊMICA HOJEEEE *
Acontece que não considero o que acontece de fato uma crise e sim uma disputa da apropriação de estética improvisada, a estética periférica que se vira com o que tem, uma mistura charmosa e irônica que o hipster adora (e de certa forma estraga) desde 2000 e pouco: sabe aquele boné Texaco, aquela camiseta de campanha política, aqueles óculos de abusador sexual que ninguém usa como Terry Richardson?

Hipster starter pack: qualquer coisa você diz que é uma ironia (e as metidas a cinéfila vão adorar a citação a Nós da camiseta…)

Hipster starter pack: qualquer coisa você diz que é uma ironia (e as metidas a cinéfila vão adorar a citação a Nós da camiseta…)

Porém o hipster não é de direita - salvo Pedro D’Eyrot, que é de direita sim. Quer dizer, tem a direita transante, é assim que eles se chamam? Ai, que vergonha, começo a acreditar na crise estética. Mas NÃO: é uma apropriação, é uma tentativa de ocupação de espaços. Num momento em que o presidente dos EUA usa o mesmo tom de bronzeamento Oompa Loompa de Jersey Shore e o presidente do Brasil (* suspiro *) faz uma coletiva em cima de uma prancha de bodyboard, bem, quer algo mais significativo que a estética do improviso sendo apropriada pelo movimento conservador? Digo, Donald Trump tem dinheiro o bastante para que seu bronzeado fique menos camp, mais David Gandy em uma propaganda da Dolce & Gabbana; Jair Bolsonaro sem dúvida pode conseguir uma mesa de mogno, quiçá mármore, para apoiar microfones em sua coletiva. Tudo leva a crer que as escolhas estéticas deles são intencionais e são montadas para parecerem improvisadas, parecem mais próximas do "gente como a gente".

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Desculpa incluir pessoa com o rosto tão horroroso aqui

É só para ilustrar… Desculpa mais uma vez

Porém não podemos deixar que isso aconteça. A estética do improviso é nossa, e não dessa galera do mal. Assim como o meme feio é nosso. O vaporwave, que eles também querem assimilar, é nosso. E o clipe da MC Loma e as Gêmeas Lacração de Envolvimento (o original) TAMBÉM É NOSSO!

Relembre essa maravilha, dê o play.

O improviso é um estímulo criativo, uma ode à liberdade, um convite à surpresa. Quando uso o termo, que se conecta às manifestações periféricas e portanto ao underground (em contraposição ao mainstream), de maneira alguma injeto carga pejorativa. Ao contrário: esse improviso é poderoso, audacioso, atrevido, o melhor "fazer do limão uma limonada"; bate de frente e por isso é ameaçador, e por isso existe uma tentativa de cooptação, assimilação para eventual anulamento de seu poder. Tenho receio em usar a palavra porque as pessoas podem ler como algo não muito pensado, destrambelhado - mas para o improviso é necessário pensar; o improviso não é o contrário do conceito, ele pode ser conceitual e, quando está na passarela, geralmente é conceitual, é também uma escolha.
Quando falo da estética do improviso, me refiro também a algo em alta agora na passarela mas que tem uma história rica e mágica, que remete ao cinema marginal dos anos 1960 e 1970 de Rogério Sganzerla, Júlio Bressane e tantos outros, desbundado, escrachado e, apesar de à margem, com refrescante apelo pop. Remete também ao punk dos anos 1970, uma estética do it yourself que prenunciava o upcycling antes da existência da palavra. Remete ao exercício de styling encharcado de personalidade de Harajuku e da revista FRUiTS (falei um pouco sobre ela e sobre o bairro japonês nesse post aqui).

Na foto de cima à esquerda, Ângela Carne e Osso, a inimiga nº 1 dos homens, personagem de Helena Ignez em A Mulher de Todos (1969) de Rogério Sganzerla; na direita, a turma punk na época da loja SEX de Vivienne Westwood (que está na extrema direita …

Na foto de cima à esquerda, Ângela Carne e Osso, a inimiga nº 1 dos homens, personagem de Helena Ignez em A Mulher de Todos (1969) de Rogério Sganzerla; na direita, a turma punk na época da loja SEX de Vivienne Westwood (que está na extrema direita de camisa), a curiosidade dessa foto é a cantora Chrissie Hynde mostrando o dedo do meio antes de ser a vocalista do Pretenders; na foto de baixo à esquerda, turminha montada de Harajuku

Na entrevista que fiz com Dudu Bertholini na ocasião do desfile da Ahlma na Casa de Criadores, ele comentou sobre esse styling que valoriza a individualidade dentro da diversidade e, de quebra, pega a roupa que já existe e a desconstrói, às vezes customiza mas principalmente a recontextualiza e com isso lhe dá uma nova carga de alta voltagem fashion. Esse é um movimento da moda que já começou com os desfiles da À La Garçonne, com a febre com cara de brechó (mas usando roupas novas) da Gucci de Alessandro Michele - porém esses exemplos são mais, digamos, sem arestas, redondinhos demais para se contaminar com a energia explosiva da improvisação.

Mais exemplos? As propostas da estilista Vicente Perrotta, antes mesmo dela entrar na Casa de Criadores - curiosamente, o desfile dela da última edição do evento não tem tanta carga pós-apocalíptica mas continua seu trabalho incrível de upcycling e de estabelecimento do corpo trans como um corpo que também deve ocupar um espaço na moda, que também é fashion e que, acima de tudo, não precisa engolir estéticas do padrão cis-heteronormativo.

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Desfile Transclandestina 3020 de Vicente Perrotta

Poesia na escadaria da Praça das Artes durante a Casa de Criadores. Foto: Marcelo Soubhia/Agência Fotosite

Falando em CdC, nessa edição que aconteceu há algumas semanas a gente viu exemplos em maior ou menor grau dessa estética, mas numa quantidade sem dúvida elevada. Vai desde o upcycling mais polido da Re-Roupa de Gabriela Mazepa até a P.O.T.E., marca da Estamparia Social que capacita egressos do sistema penitenciário e pessoas em situação de rua no ramo da moda e de personalização de produtos (canecas, cinzeiros etc.). A P.O.T.E. fez desfile intenso unindo forças de gente como o multiartista O Novíssimo Edgar, o estilista Gustavo Silvestre (do incrível Projeto Ponto Firme) e o artista Renan Soares - a apresentação fala sobre a realidade e a dificuldade do preso, a visita íntima, a marginalização de um ser humano mesmo quando ele está cumprindo sua pena e portanto no caminho para uma teórica readmissão na sociedade. Esteticamente esse e outros desfiles se incumbem de mostrar que a diversidade de corpos, etnias e sexualidades também passa pela diversidade humana: cada um é um, e por isso as propostas de moda não deveriam corresponder a essa realidade? Cabe, nessa dinâmica, a padronização e consequente uniformização?

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Streetwear com muita personalidade e cor

P.O.T.E. na edição 45 da CdC. Foto: Marcelo Soubhia/Agência Fotosite

Mas acredito que o exemplo maior da estética do improviso está com as Estileras, que em um dos dias do evento ocuparam um espaço às vistas do público na Praça das Artes e montaram o desfile assim, com todo mundo observando - performance, humor e energia. Entrevistei Ricardo Boni, uma das metadas da Estileras com Brendon Xavier, com a jornalista Giuliana Mesquita (que aliás escreveu textos sobre os desfiles para o site da Casa de Criadores, vai lá prestigiar!). Confira após a foto!

Estileras na 45ª Casa de Criadores: a estreia da dupla no evento. Foto: Marcelo Soubhia/Agência Fotosite

Estileras na 45ª Casa de Criadores: a estreia da dupla no evento. Foto: Marcelo Soubhia/Agência Fotosite

Mesquita: Explica para a gente o que é que vocês estão fazendo?
Boni: Estamos apresentando os manuais Estileras, e hoje apresentamos o manual de como apresentar um desfile: montamos nosso backstage fora e expomos o processo. Todas as roupas são de brechó e a gente produz tudo na hora, não fizemos nenhum look antes. Começamos ao meio dia e vamos ficar trabalhando aqui até às 19h, que é o horário do nosso desfile.

Wakabara: Ou seja, é um processo mais de mostrar styling do que fazer roupa?
Boni: Exato.
Mesquita: Mas também estão pintando, fazendo outras coisas…
Boni: Isso. A nossa brisa é se apresentar como a primeira marca de moda do Brasil que não se importa com moda! [Risos] Por isso que a gente abriu nossos bastidores, a gente está fudidamente incerta! [Risos] Também criamos algumas coisas no virtual - se você acessar esses QR codes [impressos e expostos] dá para acessar o perfil de todo mundo que está dentro da performance. Tem umas fotos novas que produzimos para essa ocasião. E se vocês entrarem nos stories do Instagram e procurarem Estileras no gif, tem as estampas que eles estão fazendo em gif! [só para vocês saberem, os gifs continuam lá e são ÓTEMOS, dá uma olhada!]

Wakabara: O que são as Estileras? Se uma pessoa chamar vocês para fazer um projeto, o que vocês vão fazer nesse projeto?
Boni: Somos uma dupla de artistas, eu e a Brendon, que vimos um caminho na moda mas começamos a descobrir que o meio era a mensagem. Então não era simplesmente produzir uma roupa que tivesse signos; a produção deve ser os signos que queremos que sejam comunicados. Por isso queremos mostrar o processo, falar das etapas. Somos artistas tentando resolver os problemas apresentados, tanto para a arte quanto para a moda. Temos o nosso lema que é aquele meme: “a moda quem faz são vocês". É livre, você faz na hora, é para se virar, é para reutilizar, é sobre aproveitar mesmo, aproveitar rasgo... Tudo que aparece de errado você aproveita: uma mancha é uma estampa. Repense tudo. Essa é a nossa posição como artista brasileiro. A precariedade das infraestruturas cria isso, a gente vai ter que aceitar esse erro, a gente vai ter que aceitar esse rasgo para que possamos continuar fazendo. O erro é só mais um caminho a ser seguido. Fiz toda a produção dessa performance e desfile, fizemos o conceito, os textos de divulgação, as fotos. Somos financeiro, administração… [Risos] E propomos outros meios de ver o mundo.

Foto: Marcelo Soubhia/Fotosite

Foto: Marcelo Soubhia/Fotosite

Mesquita: Vocês vão vender as roupas depois?
Boni: Sim. Temos o patrocínio da Ahlma, eles ajudaram com uma parte do financiamento do projeto e deram total liberdade, foi incrível. Então talvez tenhamos esse caminho mas ainda está tudo indefinido. Ainda não entendemos como as roupas vão ficar para saber como a gente se posiciona com elas [a entrevista foi feita antes do desfile acontecer]. É que a roupa é o final das coisas, e a gente fala mais do processo. Criamos todo esse meio, essa estrutura, para conseguir falar do que queremos.

Mesquita: São quantas pessoas participando?
Boni: 30 no total. Fizemos o look de todo mundo, mas os principais são de 10 pessoas. E eu também queria comentar que para a gente é muito importante a união, de verdade. A coletividade geralmente fica no crédito final, mas para a gente são rostos com links, ninguém é só esse "ao vivo”, temos que explorar isso.

Foto: Marcelo Soubhia/Fotosite

Foto: Marcelo Soubhia/Fotosite

E para quem ficou preocupado, bravo ou triste com o conservadorismo querendo se apropriar da estética: fique tranquilo.
Eles são intrinsicamente cafonas. Nós temos a liberdade de sermos cafonas por opção.
<3

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3 lojas bem legais para você ir no próximo fim de semana

“Lá vem ele falando de Pinheiros de novo…” Bom, desculpa se morei a vida toda aqui! Rsrs!

Tem um quarteirão específico da Cônego Eugênio Leite, entre a Artur de Azevedo e a Pinheiros, que me desperta lembranças muito boas. É que lá morava uma das minhas amigas de infância, a Mariana Amary. Passei várias tardes ali!

De uns meses para cá, esse trecho que já inclui a Bráz Elettrica e um outlet da marca Blue Bird de sapatos charmosos e confortáveis ganhou mais 3 lojas bem legais. Fui conhecer, quase fali em uma, então recomendo. Vamos dar esse giro:

Slow Art, no número 505

A Slow é uma loja coletiva com várias marcas que existe desde maio - bem recente! Quando fui estava rolando até música ao vivo de festa junina - delícia! Pelo que entendi vai acontecer de novo no próximo fim de semana mas não tenho certeza. O mix de produtos é bem variado - e isso facilita na hora de encontrar algo que seja do seu gosto!

Supergrama, no número 595

Bom, adivinha onde eu fali? Não resisti ao mix de produtos incrível da Supergrama, que inclui AMP, brechó, os móveis e decorações da Pavlon, Melissa, Modelaria, Dad’s Love, o projeto da Re-Roupa com a Farm… Quando perguntei para as vendedoras “quais marcas vocês vendem?” elas fizeram uma cara de “impossível falar todas”. E parece impossível mesmo - o lugar surpreende de tão grande e a decoração instiga, bem retrô exótica, fazendo você ficar com vontade de fuçar tudo. Fuça mesmo!

Mod / Filter / Punto e Filo, no número 659

Essa loja junta a marca de decoração Mod com o antiquário Filo e os tapetes da Punto e Filo. É daquele tipo de estabelecimento que você entra e pensa: “Puxa, por que a minha conta bancária não é igual a da Paris Hilton? Eu tenho muito mais bom gosto que ela…”

E esse foi o rolê de hoje! É pertinho da estação Fradique Coutinho de metrô ou do ponto de ônibus do corredor da Rebouças (é o do McDonald’s). Vá de transporte público! Economizar é show!