Wakabara

  • SI, COPIMILA • COMPRE MEU LIVRO
  • Podcast
  • Portfólio
  • Blog
  • Sobre
  • Links
  • Twitter
  • Instagram
  • Fale comigo
  • Newsletter
A formação clássica do Kid Abelha: Leoni, Bruno Fortunato, Paula Toller e George Israel

A formação clássica do Kid Abelha: Leoni, Bruno Fortunato, Paula Toller e George Israel

O incidente no Estádio de Remo da Lagoa

November 20, 2020 by Jorge Wakabara in música, política

No começo do BRock, quando as bandas começavam a despontar, algo aconteceu envolvendo dois destaques desse novo cenário de futuras celebridades. Era a Paula Toller, vocalista do Kid Abelha, e Herbert Vianna, uma das pontas do trio Paralamas do Sucesso. Paula ainda namorava e morava com Leoni, companheiro de banda, quando rolou um clima com Herbert e um beijo.

Paula e Leoni no palco

Paula e Leoni no palco

Acabou que Leoni saiu de casa e Herbert e Paula começaram a namorar, em meados de 1984. Acabaram morando juntos, mas o paralama diz que ela era muito competitiva e a banda dele, que na época era menor que o Kid (!!!), começou a crescer. E aí chegamos em 23 de fevereiro de 1986, o dia do Cidade Live Concert, um show organizado pela Rádio Cidade que rolou no Estádio de Remo da Lagoa, no Rio.

O clima da gravação do segundo álbum do Kid Abelha, o Educação Sentimental, lançado em maio de 1985, já tinha sido meio esquisito. Nessa época, Leoni já namorava com ninguém menos que Fabiana Kherlakian, ela mesma, a filha do fundador da Zoomp. Diz Herbert, segundo publicado no livro Os Paralamas do Sucesso: Vamo Batê Lata do Jamari França, que Fabiana instigava Leoni a ter mais atitude na dinâmica da banda, a impor uma necessidade de cantar mais (ou seja, dividir os microfones com Paula).

Todas as músicas do Kid lançadas até aquele momento eram co-autoria de Leoni com mais alguém, sendo que Ele Quer me Conquistar (1984), Os Outros e Educação Sentimental em si (ambas de 1985) são só dele. No segundo álbum, Leoni assume o vocal principal em Conspiração Internacional e Educação Sentimental – ambas boas, e pelo que entendo não muito bem trabalhadas nas rádios. Existe um compacto promocional de Educação Sentimental, mas será que ele foi realmente promovido?

educacao-sentimental-compacto.jpg

Voltando ao show: Léo Jaime foi um dos artistas que se apresentaram. Ele chamou Paula e George Israel, outro integrante do Kid, para cantar Fórmula do Amor, e não chamou nem citou Leoni como um dos co-autores da música. Fez-se a confusão. Para Leoni aquilo foi a gota d'água: ele e Paula (que tomou o partido de Léo) começaram a discutir, ela gritou, ele a segurou, ela disse “me larga, me larga”, e quando ele largou… O pandeiro que estava na mão da Paula foi direto na cabeça dele. Herbert e Fabiana estavam presentes e, na briga, do lado dos então respectivos pares, claro.

Recentemente rolou uma live com Aquiles Priester e Gilson Naspolini mais os ex-bateristas do Kid Abelha Kadu Menezes, Cláudio Infante e Adal Fonseca (a banda terminou em 2016). Menezes contou que chegou no local da confusão minutos depois dessa pandeirada. Diz que Paula e Fabiana estavam berrando.

Ah, e uma curiosidade: Seu Espião e Por Que Não Eu?, dois dos maiores sucessos do primeiro disco de 1984 do Kid, são de autoria de Leoni, Paula e Herbert! Que trio…

Segundo Herbert, Paula e ele passaram a noite pós-show em claro, com todo mundo (menos Leoni e Fabiana, óbvio) reunido no apartamento que eles dividiam. A pauta: o Kid Abelha continuaria sem o seu principal compositor? Sim, porque Leoni decidiu sair!
(No dia seguinte, dizem que tinha foto de Leoni no Segundo Caderno com esparadrapo na cabeça. Não achei – se alguém achar me manda?)

Paula, George e Bruno Fortunato acabaram decidindo seguir em frente e soltaram um álbum ao vivo gravado em setembro de 1986 em São Paulo, ainda recheado de canções de co-autoria de Leoni (a única que não tem o dedo dele é Nada Por Mim, de Herbert e Paula, lançada antes por Marina Lima). Em 1987 viria o disco Tomate, com hits como Amanhã é 23 e No Meio da Rua (ambas de Paula e George).

E o relacionamento de Herbert e Paula? A sequência da história é complexa. Ele fala em traição, sem citar nomes. Ela, em entrevista para a revista Trip em 2009, diz: “A gente ficou dois anos no máximo, e o ano da separação, que é um outro ano de vai e volta, sabe? Bem complicado...”. A verdade é que em 1987 ela casou com o cineasta Lui Faria – e segue com ele até hoje.

Herbert ficou arrasado na época. Teoricamente, alguns clássicos do Paralamas saíram desse coração quebrado. A gente imagina, por exemplo, que Uns Dias e Quase Um Segundo são para Paula Toller.

“Eu nem te falei
Que eu te procurei
Pra me confessar
Eu chorava de amor
E não porque sofria
Mas você chegou já era dia
E não estava sozinha
Eu tive fora uns dias
Eu te odiei uns dias
Eu quis te matar”
— Trecho da letra de Uns Dias, de Herbert Vianna

Hum, bem… contundente, né? Risos.
Em 1989, Herbert conheceria a mulher que ele considera o amor da sua vida até hoje: a inglesa Lucy. Mas isso é outra história.

Mas e o Leoni, hein?

A história de mais um hit maker

Eu sei, sou muito safado. Te prendi pela fofoca e de repente você está lendo a história de mais um hit maker brasileiro que na minha opinião ainda merece reconhecimento. Seu nome? Carlos Leoni!

Após sair da banda definitivamente naquela noite, Leoni partiu para outra. Mais especificamente para outra banda, onde de fato seria o líder. Era o Heróis da Resistência. O nome saiu de uma música que ele fez para Ney Matogrosso, e a primeira formação incluía Lulu Martin, Alfredo Dias Gomes (isso mesmo, o filho de Dias Gomes e Janete Clair, autores de novela highness!) e Jorge Shy. Em 1987, saía o primeiro álbum deles. Todas as músicas são do Leoni ou de co-autoria dele, incluindo o primeiro super hit, que ele divide com… Fabiana Kherlakian. Sim! Fabiana é co-autora de Só Pro Meu Prazer!!! Quando o disco foi lançado, eles já tinham se separado.

Outro sucesso do Heróis foi Doublê de Corpo. A parceria com o tecladista Martin também é do primeiro álbum e foi parar na trilha da novela O Outro. (Só pro Meu Prazer também era de novela – saiu na trilha de Hipertensão!)

Acho importante deixar claro aqui que, pra além de músico cantando e tocando em carreira solo ou em bandas, Leoni é compositor e sempre foi. Especializado em pop. Muita música boa, de ontem e hoje.
Para encurtar, vou deixar só uma listinha básica aqui.

. Cenas Obscenas (Yann Laouenan, Alec Haiat, Léo Jaime e Leoni), lançada pelo Metrô em 1985
. Exagerado (Cazuza, Ezequiel Neves e Leoni), lançada por Cazuza em 1985
. Diário de Mentiras (Leoni), lançado por Emilinha em 1986
. Dívidas de Amor (Leoni e Ney Matogrosso), lançada por Ney Matogrosso em 1986
. Pra Dizer Adeus (Wander Taffo, Ivan Busic, Andria Busic e Leoni), lançada por Wander Taffo em 1989
. SLA Radical Dance Disco Club (Leoni e Fernanda Abreu), lançada por Fernanda Abreu em 1990
. Clareiras (Leoni), lançada pelo 14 Bis em 1992
. Tudo Bem Com Você (Pepeu Gomes, Vinícius Cantuária e Leoni), lançada por Pepeu Gomes em 1993
. Diferenças (Leoni), lançada por Simony em 1995
. Glamour (Leoni e Luciana Fregolente), lançada por Thalma de Freitas em 1996
. Menos Carnaval (Leoni e Luciano Maurício), lançada pelas Sublimes em 1997 (e tem uma regravação mara da Belô Velloso de 2007)
. Melhor pra Mim (Leoni), lançada por Verônica Sabino em 1999
. Temporada das Flores (Leoni), lançada por Milena Monteiro em 2002 (e depois regravada em versão ao vivo por Daniela Mercury em 2003)
. Sempre por Querer (Alvin L, Leoni e Luciana Fregolente), lançada por LS Jack em 2004
. Três Dias de Ventania (Paulo Malaguti Pauleira e Leoni), lançada por Arranco de Varsóvia em 2005 (é um SAMBA! E é bem simpático!)
. Canção pra Quando Você Voltar (Leoni e Herbert Vianna), lançada por Leoni (com feat de Herbert) em 2005
. Fora de Lugar (Leoni e Herbert Vianna), lançada pelos Paralamas do Sucesso em 2005
. Soneto do Teu Corpo (Leoni e Moska), lançada por Mart'nália em 2006
. Intimidade Entre Estranhos (Roberto Frejat e Leoni), lançada por Frejat em 2008
. Melhor e Diferente (Thedy Corrêa e Leoni), lançada pelo Nenhum de Nós em 2011
. Sem Flores (Daniel Lopes e Leoni), lançada por Daniel Lopes em 2013
. Quem nos Dera (Leoni e Zélia Duncan), lançada pela Roberta Campos em 2018

O Heróis lançou mais dois álbuns e acabou em 1992. Leoni assumiu a carreira solo e em 1993 lançou um álbum que continha a More than Words nacional, a canção que disputa lugar entre as da Legião Urbana nas rodinhas de violão. O clássico que dá sequência a uma das mais clássicas canções do Kid Abelha, Garotos, lançada em 1985. É Garotos II - O Outro Lado:

Respect!

E da treta, o que restou? Bom, Leoni chegou a dividir apartamento com Léo Jaime depois disso tudo. Eles voltaram a compor juntos. Herbert, como vimos, cantou com Leoni – a música Canção pra Quando Você Voltar começou a ser feita por Leoni quando Herbert entrou em coma, pós-acidente no qual Lucy morreu.

Fabiana Kherlakian, por sua vez, foi pra outra turma. Depois de Leoni, com quem ainda fez mais algumas músicas do Heróis (Sujeito Oculto e Narciso, do segundo álbum deles Religio), ela teve um relacionamento com ninguém menos que Supla. E sim, compôs músicas com ele também! Entre as parcerias, está Sai pra Lá Vudu, com Andria e Ivan Busic, Eduardo Aradanuy e o próprio Supla.

Só pra te dar uma noção de tempo: Uma Escola Atrapalhada, o filme com Supla e Angélica, saiu em 1990. O disco com Sai pra Lá Vudu é de 1991.
Vou confessar um negócio pra vocês… Eu gosto desse disco do Supla. Gosto bastante.

(Fabiana sairia no noticiário com uma nova treta já no novo milênio, em 2006. Era o fim do seu casamento com o ator Marcos Pasquim, com quem tem uma filha, Allicia. Ele a traiu publicamente beijando uma figurante na festa de encerramento da novela Bang Bang.)

Bom, tudo vai bem entre todos depois do incidente no Estádio de Remo da Lagoa, ao que tudo indica, né?

Eba! Amigos forever!

Eba! Amigos forever!

Mas ATENÇÃO. Não tão rápido, meu bem.
Faltou alguém aí, você sabe.
Sim, ela. A mulher da pandeirola.
E a Paula Toller?

O que a gente sabe: em 2018, Paula processou o PT e Leoni pelo uso indevido de uma versão da música Pintura Íntima, que é de autoria dela e Leoni, nas eleições. O partido e o músico perderam e tiveram que pagar indenização. E chumbo trocado pode não doer, mas pesa no bolso – Leoni também entrou na justiça em 2020 para impedir Paula de usar o título Como Eu Quero, outra música dos dois, para batizar sua turnê.

paula-toller.jpg

Paula, que conseguiu ser a mulher de maior destaque do BRock, front woman de uma banda longeva, foi ironicamente uma heroína da resistência. Mas nos anos 2000, ela vem sendo apontada como bolsonarista e de direita. Esse processo contra o PT só ajudou a alimentar tudo isso. Em entrevistas, ela diz que essa moda de cancelamento no seu caso é antiga, de antes de redes sociais – a imprensa sempre fez bullying com a sua pessoa.
Também aparecem cada vez mais comentários sobre o Kid Abelha ter acabado em 2016 porque queriam transformar Paula em diva solo – um roteiro velho e bem manjado. Só que acho importante ver os dois lados: será que o Kid Abelha não durou tempo demais? Será que não é natural que ela e os empresários realmente desejem uma carreira solo?
Longe de mim querer defender bolsonarista, mas sinto certo tom misógino nessa história. Ao mesmo tempo, fico achando que onde há fumaça (e como há fumaça, né?), há fogo.
Prefiro então me abster, sem tomar partido nessa treta toda. Meu time aqui é do pop bom, e isso essa longa trama tem de sobra.

Paula e Herbert quando ainda eram um casal e ela ainda era morena

Paula e Herbert quando ainda eram um casal e ela ainda era morena

Quem curtiu esse post pode gostar desses outros:
. Quem são as absurdettes da Gang 90?
. As mães dos filhos de Gaspar Kundera da novela Top Model
. A ligação entre os Mutantes e Sandy & Junior

November 20, 2020 /Jorge Wakabara
BRock, Paula Toller, Kid Abelha, Herbert Vianna, Paralamas do Sucesso, Leoni, Cidade Live Concert, Rádio Cidade, Estádio de Remo da Lagoa, Rio de Janeiro, Fabiana Kherlakian, Zoomp, Jamari França, Léo Jaime, George Israel, Aquiles Priester, Gilson Naspolini, Kadu Menezes, Cláudio Infante, Adal Fonseca, Bruno Fortunato, Lui Faria, Lucy Needham Vianna, Heróis da Resistência, Ney Matogrosso, Lulu Martin, Alfredo Dias Gomes, Dias Gomes, Janete Clair, novela, Jorge Shy, pop, Yann Laouenan, Alec Haiat, Metrô, Cazuza, Ezequiel Neves, Emilinha, Wander Taffo, Ivan Busic, Andria Busic, Fernanda Abreu, 14 Bis, Pepeu Gomes, Vinícius Cantuária, Simony, Luciana Fregolente, Thalma de Freitas, Luciano Maurício, Sublimes, Belô Velloso, Verônica Sabino, Milena Monteiro, Daniela Mercury, Alvin L, LS Jack, Paulo Malaguti Pauleira, Arranco de Varsóvia, samba, Moska, Mart'nália, Roberto Frejat, Thedy Corrêa, Nenhum de Nós, Daniel Lopes, Zélia Duncan, Roberta Campos, Supla, Eduardo Aradanuy, Uma Escola Atrapalhada, Marcos Pasquim, PT, Jair Bolsonaro, cancelamento, bullying
música, política
heathers.jpg

"I'm not a Heather, I'm a Veronica": Heathers, que inspirou Ryan Murphy, que inspirou Heathers

July 27, 2020 by Jorge Wakabara in cinema, TV

It's just!
Se você ainda não assistiu a Heathers, o filme de 1988 que em português ganhou o infeliz nome de Atração Mortal, pare tudo e ASSISTA. Mas antes, um aviso: talvez você não goste. Nem todo mundo gosta. Heathers é comédia de humor macabro, brinca com valores com os quais muita gente ainda se identifica, mexe com a “instituição” bullying de um jeito que poucas (ou nenhuma?) obra de ficção conseguiu depois, e mais importante de tudo… fala de suicídio adolescente, que pode ser um gatilho para muita gente.
Avisos feitos, vamos lá. Vou tentar não dar spoilers, mas acho que pode rolar umas escapadas – você foi avisado.

Veronica Sawyer (Winona Ryder) e Jason Dean (Christian Slater) em um dos velórios de Heathers

Veronica Sawyer (Winona Ryder) e Jason Dean (Christian Slater) em um dos velórios de Heathers

Quem diria que ia dar certo? Pouca gente. O próprio roteirista Daniel Waters, em entrevistas, reconhece que foi ingênuo e não pensou nos efeitos que sua escrita poderia causar. Ele simplesmente escreveu o que queria ver. Na época, todos os longas teen clássicos de John Hughes já tinham sido lançados e portanto o "panteão mítico” do high school norte-americano já havia se espalhado pelo mundo via Hollywood. Antes de Heather Chandler (Kim Walker), existiu Benny (Kate Vernon) e suas amigas em A Garota de Rosa-Shocking; antes do jock Ram (Patrick Labyorteaux) tivemos os bullies Ian (Robert Downey Jr) e Max (Robert Rusler) em Mulher Nota 1000; antes do bad boy Jason Dean tivemos John Bender (Judd Nelson) em Clube dos Cinco.

E principalmente: antes de Winona Ryder tivemos Molly Ringwald. Uma nova it girl roubava os holofotes, e essa tinha um toque dark, próprio dos anos 1990 que chegavam. Se a princesa Claire (Ringwald) ficou com Bender no fim do Clube, isso era apenas um prenúncio da síndrome de Jean Grey: é para ela ficar com o Ciclope, mas o Wolverine lhe parece estranhamente irresistível…
Ringwald de certa forma fez isso com o roqueiro moderno Dweezil Zappa, mas Winona ultrapassaria essa marca: enquanto Veronica Sawyer participava efetivamente da trama ao forjar o bilhete de suicídio de uma das Heathers (ela no mínimo poderia ser acusada de cúmplice), a atriz em si namoraria com Slater (em algum momento das filmagens ele deixaria a então namorada Walker para ficar com Ryder), Johnny Depp, David Pirner (o vocalista do Soul Asylum)… E, principalmente, ELA MESMA tomaria o papel de bad girl ao ser presa roubando na Saks. Sua posição de musa cult depois de Edward Mãos de Tesoura (1990), Caindo na Real (1994), Garota Interrompida (1999) e principalmente o próprio Heathers confunde personagem e vida real e a deixa sujeita à empatia e identificação pela Geração X, que simplesmente trocou Molly por ela. Não que Molly fosse menos moderna ou carismática… Os anos 1990 pediam por algo mais grunge, simplesmente. Menos perfeito.

E o mesmo pode ser dito sobre Heathers em si. Regina George (Rachel McAdams) em Meninas Malvadas é basic bitch perto das Heathers. Elas são o molde real das outras. O menor exagero no bullying confrontado com elementos estranhamente sedutores (críquete? frases maravilhosas que a gente nunca acreditaria que saíram da boca de uma garota do Ensino Médio porque são mais apropriadas para uma bicha de um conto de Caio Fernando Abreu?) fazem Heather Chandler ser mais realista e assim ficar ainda mais odiosa.

Jason Dean, ou JD, vem para completar o cenário. Fora a comparação óbvia com James Dean, o rebelde sem causa ainda vem com uma referência bônus escondida. O livro que Heather Duke (Shannen Doherty) lê é Moby Dick por motivos financeiros: a ideia inicial seria que ela estivesse lendo O Apanhador no Campo de Centeio. Fora o fato do livro de JD Salinger (olha aí, JD, hein, hein) ser cult, tipo existencialismo para adolescentes, ele era (e é) um pedido comum de leitura das aulas de literatura norte-americana do high school dos EUA. Mas Salinger não quis ceder os direitos – e Moby Dick virou a nova pedida porque seus direitos tinham expirado, já era domínio público. Para quem não está familiarizado, Moby Dick tem mil simbolismos discutidos ao longo dos anos (não é à toa que é um clássico), entre eles a discussão de valores morais da sociedade, a sede por dinheiro corrompendo as relações, os limites da humanidade e por aí vai. Faz sentido.

heathers-3.jpg

Heathers foi considerado um fracasso de crítica e de bilheteria na época do seu lançamento. A redenção só veio depois, em vídeo, quando o filme foi se transformando num clássico cult e teve impacto na cultura pop comparável aos hits de Hughes. Frases e expressões que Waters inventou viraram realidade na boca dos adolescentes, Heather virou um substantivo para a gente se referir a bullies ricas e o filme se transformou em inspiração para, bem… Ryan Murphy. Porque afinal o longa é a cara do Ryan Murphy (na minha opinião, um pouco menos glamouroso, menos mainstream, menos superproduzido e por isso mais legal, mas você entendeu).

Ryan Murphy: origins

No começo, era Popular. A série de duas temporadas que Murphy criou com Gina Matthews e passou na TV americana entre 1999 e 2001 já trazia uma discussão sobre popularidade no Ensino Médio. De um lado a cheerleader Brooke McQueen (Leslie Bibb), do outro a nerd Sam McPherson (Carly Pope), cada uma popular em seu "segmento" – elas se vêem forçadas a conviver quando o pai de uma e a mãe de outra começam um relacionamento. Com isso, essa turma toda precisa aprender a socializar, já que Brooke e Sam passam a morar na mesma casa. Ou seja: já existiam umas Heathers aqui, sim?

Mas o sucesso de Ryan viria na forma de Nip/Tuck (2003-10), sobre uma dupla de cirurgiões plásticos. E a consagração? Glee (2009-15).

glee-2.jpg

Bom, não vou falar da Naya Rivera nem da Lea Michele porque não é essa a ideia. Mas enfim: RIP Naya, Lea quem-se-importa-com-essa-tonta.

Queria atentar que, por mais que na sua extensão Glee tenha se transformado numa novelinha musical besta, no começo ela tinha um pulo do gato muito interessante: o seu foco seria na Martha Dunnstock, e não exatamente nas Heathers (apesar de, sim, as cheerleaders Cheerios serem Heathers). Ou seja: o foco era nas vítimas de bullying. Em parte, o tema central eram os conflitos entre os populares e os "esquisitos", os marginalizados, mas acima de tudo as lentes estavam nas vítimas mudando de papel num subgrupo dentro da escola: o coral. No caso de Rachel Berry (Lea Michele), ela vai de zoada à rainha da cocada preta. Eles constroem uma outra hierarquia à sua maneira e à parte da estrutura social da escola toda.

E bom, existia o fato de ser um musical, coisa que eu não aguento, mas com Glee eu tinha aquele guilty pleasure de querer saber o que ia acontecer com aquele bando de personagem raso em tramas e reviravoltas ridículas mesmo tendo que aguentar versões pasteurizadas de músicas em sua maioria boas.

Como a gente está falando de bullying, é claro que Heathers pairava como uma referência em cima de Glee. Mas Murphy citou Heathers nominalmente em entrevista depois, em 2015, na sua nova aposta na época… Scream Queens (2015-16).

As Chanels de Scream Queens

As Chanels de Scream Queens

No lançamento, grande parte das manchetes foi dominada pela participação de Ariana Grande (como Chanel nº 2) e Nick Jonas (como Boone) na primeira temporada, mas a presença de Jamie Lee Curtis (num papel estranhamente parecido com a Sue Sylvester de Jane Lynch em Glee, um dos fatores que reforçam a crítica a Murphy de que ele se repete muito) e o próprio título conecta a série a filmes de terror adolescente, mais especificamente à franquia de Halloween na qual Curtis fazia uma scream queen em si. Scream queen virou uma expressão para as "mocinhas” desses longas que não fazem muito mais do que gritar e fugir do assassino, alvo de crítica porque esconde um machismo ao colocar a mulher sempre no papel de vítima indefesa e incapaz. É mais complexo que isso (tem scream queen que mata o assassino sozinha), mas resumidamente é por aí!

Na série, assim como no filme Heathers, os papéis se confundem. Nenhuma menina aparece gritando em Heathers. E Veronica Sawyer está longe de ser uma vítima, apesar de se vitimizar. Em Scream Queens elas gritam, até demais. Mas sempre fica a dúvida: elas são vítimas ou são serial killers?

Em plena Comic-Con, Murphy declarou em 2015 que Scream Queens era um encontro de Halloween e Heathers. O maior aceno de todos está na turma das Chanel, liderada por Chanel Oberlin (Emma Roberts). Ao contrário das Heathers, que por coincidência têm o mesmo nome, na série as outras Chanel mudaram de nome a mando da primeira, sendo apontadas como Chanel nº 2, 3, 4… O verdadeiro nome de Chanel nº 5, por exemplo, é Libby Putney (Abigail Breslin).

Uma mudança importante é que Scream Queens se passa numa universidade. O que é bem esquisito, já que os dramas e a trama continuam sendo adolescentes demais.

Chanel nº 3 (Billie Lourd), Chanel Oberlin e Chanel nº 5 na segunda temporada de Scream Queens, que conseguiu ser mais imbecil que a primeira – e talvez por isso até mais divertida, no sentido camp da coisa?

Chanel nº 3 (Billie Lourd), Chanel Oberlin e Chanel nº 5 na segunda temporada de Scream Queens, que conseguiu ser mais imbecil que a primeira – e talvez por isso até mais divertida, no sentido camp da coisa?

O fator “adolescentes assassinos” grita Heathers (desculpa o trocadilho). Mas Murphy tirou algo muito importante da fórmula: a simulação de suicídio. Já fica óbvio, logo de cara, que existe um serial killer entre os personagens.

Nesse meio tempo, em 2010, e talvez olhando para o sucesso de Glee, cometeram uma coisa que, eu sei, tem muitos fãs, mas eu acho um grande cocô fedido… Heathers: the Musical.

POR QUE OS NORTE-AMERICANOS PRECISAM TRANSFORMAR TUDO EM MUSICAL, CAZZO???

Heathers: the Musical estreou em 2014 em Los Angeles. A história é basicamente a mesma só que com música. Dói demais.
Só que virou mais um cult. Sinceramente, como costumo observar as pessoas que estão ao meu lado nas trincheiras, nem todo mundo que ama o filme gosta do musical e isso já diz muita coisa. Para mim, ele pensa demais no mainstream. É Murphy demais. O humor macabro perde muito da sua ironia fina. As músicas que exploram o sentimento dos personagens (e portanto são sentimentalistas) tentam explicar demais, deixam tudo mastigadinho e sem lugar para interpretações. Tudo ganha um ar de moralismo fake. Praticamente vira um similar do hit fictício do filme original Teenage Suicide (Don't Do It).

O musical ganhou diversas montagens. Em 2019, chegou no Brasil.

Riverdale, aquela série besta, ganhou um episódio na sua terceira temporada (2019) em que a escola vai montar o musical (existe uma versão especial de Heathers: the Musical para montagens escolares desde 2016, tipo "censura livre", com cortes e adaptações). Eu assisti ao episódio para você não ter que passar por essa tortura. É como um Glee com personagens de Riverdale, ou seja, um dos sinais do apocalipse. Eles não disfarçam as obviedades no casting, como Cheryl Blossom (Madelaine Petsch) no papel de Heather Chandler e Betty (Lili Reinhart) e Veronica (Camila Mendes) fazendo as outras Heathers. Veronica Sawyer é interpretada por Josie (Ashleigh Murray), mas eu acho que tem uma música que era pra ser dela e é cantada pela… Veronica da Camila Mendes. Risos. Ah: e quem assume o JD é Sweet Pea (Jordan Connor) e não Jughead (Cole Sprouse), como os fãs poderiam esperar, ou mesmo Archie (KJ Apa).
Enfim: better to be gently fucked by a chainsaw do que assistir isso.
(Desculpas sinceras para minha sobrinha Gabriela, eu sei que ela gosta)

Enquanto isso, depois de Scream Queens e de 13 Reasons Why (2017-20), parece que liberou. Em 2009, surgiram as primeiras notícias de que Heathers, mesmo envolvendo o tabu do suicídio adolescente, viraria uma série de TV pela Sony. Em 2012, surgiu um papo de que seria uma série da Bravo. Mas a coisa ainda demoraria a engrenar. Ela viria pelas mãos da Paramount, mas sofreria adiamento e cortes por causa de mais tiroteios em escolas dos EUA. Querendo evitar cutucar o vespeiro, a Paramount postergou a estreia o quanto pode. O primeiro trailer só saiu em 2018.

A série Heathers que não é de Murphy – mas poderia, em suas qualidades e, principalmente, seus defeitos

O trailer sofreu uma saraivada de críticas. Era pra tanto? Bom… se o filme já desperta opiniões fortes, a favor ou contra, a série jogou gasolina em tudo.

Haters gonna hate: Veronica Sawyer (Grace Victoria Cox), Heather Chandler (Melanie Field), Heather Duke (Brendan Scanell) e Heather McNamara (Jasmine Mathews)

Haters gonna hate: Veronica Sawyer (Grace Victoria Cox), Heather Chandler (Melanie Field), Heather Duke (Brendan Scanell) e Heather McNamara (Jasmine Mathews)

Logo de cara as coisas ficam confusas. Ao mesmo tempo que a série é um reboot, com praticamente todos os personagens reinventados mantendo seus nomes e as frases que fizeram tanto sucesso na obra original, quem conhece a primeira versão fica confuso ao ver ela…

SHANNEN FUCKING DOHERTY

SHANNEN FUCKING DOHERTY

Sendo que ela era ela…

Heather Duke (Doherty) em Heathers (1988)

Heather Duke (Doherty) em Heathers (1988)

Ué???

Acontece que a participação de Doherty é só uma graça, um dos vários acenos que a série faz para o filme. O papel dela é da mãe de JD (James Scully). Só que ela tem o clássico frufru vermelho símbolo da menina mais popular da escola no filme original (a princípio Heather Chandler). Tá vendo na foto? Existe uma brincadeira no longa de que Heather Chandler sempre escolhe o taco vermelho no críquete, mas isso era bem sutil – no musical o vermelho vira “a cor” de Chandler e, em Riverdale, a “possessividade” do vermelho é explorada com Cheryl Blossom.
O frufru da mãe de JD acaba com Veronica na série.

Essa nova versão de Heathers faz brincadeiras tipo fan service. Umas mudancinhas. Algumas funcionam e outras não. Quem joga críquete com Veronica é Betty Finn (Nikki SooHoo). E Veronica quem manda. Ela sempre quer o taco azul.

heathers-serie-2.jpg

Mas o principal é que num mundo pós-Glee e politicamente correto, com celulares e a sede por seguidores e likes, o conceito de popularidade adolescente não é mais o mesmo de 1988. O novo Heathers incomoda porque faz troça do discurso politicamente correto, da representatividade, do que a gente valoriza hoje. A pobre cheerleader é secundária, quase figurante. E Heather Chandler é gorda, body positive, cool, artsy… e ainda assim uma desgraçada que faz bullying. Sim, o feitiço virou contra o feiticeiro; a minoria ficou popular e é quem manda – a cena em que um pai chora no filme, dizendo que tem orgulho do seu "filho homossexual morto”, vira uma cena em que o pai chora dizendo que tem orgulho da sua "filha heterossexual morta".
Hum… É engraçado, mas por quê? Não é uma forma de embutir que as ideias progressistas talvez estejam “exageradas demais"? Não curto essa onda. Talvez por que me sinta atingido? É bem complexo. Mas não me parece certo fazer comédia sobre conquistas das minorias de uma maneira tão sinistra e insensível.

heathers-serie-3.jpg

Ah, sim: e se você não percebeu, Heather Duke é gender fluid (atende pelos pronomes ela/dela) e Heather McNamara é negra e lésbica.
Veronica? É uma garota branca, loira, de olho claro, normal. Não é careta mas tem todos os privilégios que poderia.
A série não segue a história do filme, mas trata dos mesmos temas. E é bizarramente Murphy, apesar dele não estar envolvido na sua criação. Simplifica questões, resolve conflitos de maneira pueril, faz reviravoltas folhetinescas absurdas. E tem momentinhos musicais (ARGH). O descaso é tanto que um dos personagens que morrem no fim de um episódio não causa impacto nenhum no episódio seguinte; a sua morte é citada, meio por cima. Sem drama, ninguém ficou exatamente chateado, feliz ou minimamente atingido. Seria um statement se isso acontecesse com as outras mortes de maneira similar – e não, as outras mortes são encaradas de maneira muito mais importante.

A mensagem que fica é mais ou menos "ninguém é inocente". Do tipo “o sonho do oprimido é ser um opressor".
Pra mim, até uma das sacadas mais legais do roteiro, que coloca o JD com um discursinho meio 4chan, quase incel, é estragada pelo exagero – tem uma hora que você não aguenta mais ouvi-lo falando. Nem a Veronica!

E na comparação, o carisma de James Scully fica devendo pencas pro Christian Slater

E na comparação, o carisma de James Scully fica devendo pencas pro Christian Slater

Uma das únicas coisas que realmente prestam é… Selma Blair. Ela faz a madrasta de Heather Duke, uma prostituta vulgar que é bem estereotipada mas ao mesmo tempo maravilhosa.

E o fim? Bom, Heathers, o filme, tinha um fim previsto que acabou sendo descartado porque os produtores acharam que era pesado demais para um filme adolescente. Na versão pasteurizada da série, eles conseguiram reproduzir mais ou menos esse fim original. E é ruim demais, viu?
Ruim demais.
Depois não vai dizer que eu não avisei.
Heathers, a série, está disponível na Globoplay.

Quem gostou desse post também vai gostar de:
. A melhor pior coisa de 2019: o reboot de Barrados no Baile
. Mystic Pop-Up Bar: uma série completa
. A relação entre a família Zappa e os filmes adolescentes norte-americanos dos anos 1980

July 27, 2020 /Jorge Wakabara
Heathers, Atração Mortal, comédia, bullying, Christian Slater, Daniel Waters, Kim Walker, Patrick Labyorteaux, Winona Ryder, anos 1980, síndrome de Jean Grey, Saks Fifth Avenue, Caindo na Real, Edward Mãos de Tesoura, Garota Interrompida, Geração X, críquete, James Dean, Shannen Doherty, Moby Dick, O Apanhador no Campo de Centeio, JD Salinger, pop, Ryan Murphy, Popular, Gina Matthews, Ensino Médio, Leslie Bibb, Carly Pope, Glee, Lea Michele, musical, Scream Queens, Ariana Grande, Nick Jonas, Jamie Lee Curtis, Jane Lynch, terror, Halloween, serial killer, Comic-Con, Emma Roberts, Abigail Breslin, universidade, Billie Lourd, camp, Heathers: the Musical, mainstream, Riverdale, Madelaine Petsch, Lili Reinhart, Camila Mendes, Ashleigh Murray, Jordan Connor, Cole Sprouse, KJ Apa, 13 Reasons Why, Paramount, Grace Victoria Cox, Melanie Field, Brendan Scanell, Jasmine Mathews, James Scully, Nikki SooHoo, politicamente correto, incel, 4chan, Selma Blair, Globoplay
cinema, TV

Powered by Squarespace