A Madonna não foi no último desfile do Jean Paul Gaultier - mas olha quem foi...

Tem quem a chame de "Madonna francesa", o que particularmente acho um exagero. Coisas que críticos de música inventam para te situar rapidamente em um cenário sem precisar gastar 5 parágrafos para isso. Mas mesmo na relação entre estilista e artista, o que Jean Paul Gaultier já fez para Mylène Farmer não passa perto do impacto do as coisas que ele já criou para Madonna causaram, principalmente para a Blond Ambition Tour. Mas, bom, se não tem a rainha do pop, vai tu mesmo…

Mylène Farmer foi a atração surpresa do desfile de despedida de Gaultier que rolou na semana passada em Paris e, se ela não é famosa mundialmente, isso representou muito para o criador sim. Sem dúvida ela é uma das suas musas mais importantes, e na França ela é de fato um ícone. O look da capa de Anamorphosée, o quarto álbum de estúdio dela, de 1995, é dele - e essa é apenas a ponta do iceberg.

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Nessa época Farmer já era uma grande estrela. Alguns de seus maiores sucessos, como Désenchantée, já haviam sido lançados. Anamorphosée foi um momento de reinvenção, com Farmer tentando algo mais arriscado, se aventurando por uma sonoridade menos popzinha. Para quem não se lembra, nessa mesma época a Madonna se dava uma reinventada com R&B e música assinada por Björk em Bedtime Stories (1994). Farmer fez diferente - foi para uma sonoridade mais suja, mais… grunge?

Só que esse não foi o começo. Ela já havia vestido Gaultier em 1991, no clipe do single Je t’Aime Melancolie do álbum L’Autre

Hard Candy quem?

Também teve Que Mon Coeur Lâche de 1992, clipe meio curta: segura que o diretor é ninguém menos que Luc Besson!

Babado, hein? É toda uma confusão, tem até Michael Jackson (um ator interpretando-o, na verdade, o Christopher Gaspar, que trabalha como cover do cantor). E uma história bem doida, de Deus querendo saber o que é essa coisa de amor e mandando um anjo (Farmer em si) no lugar de Jesus Cristo. Quando Jesus pergunta “Pai, por que não me manda?” ele responde "A última vez foi um desastre".

Farmer usa um look branco no início e não se engane: esse é do mestre Azzedine Alaïa. O look de Gaultier nesse clipe é do “anjo caído": preto, sexy. Não que o primeiro não fosse sexy também…

E Besson deve ter gostado do cabelo ruivo de Farmer e do look do Gaultier: em 1997 ele lançaria O Quinto Elemento com Milla Jovovich de cabelo vermelhaço usando… Gaultier, oui.

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Farmer, assim como Madonna, se aventurou pela carreira de atriz - mas não foi com Besson. Em 1994 fez Giorgino, o longa dirigido por Laurent Boutonnat, superparceiro artístico dela que também está por trás de diversos clipes dela. Figurino: não, não era Gaultier. Quem assina é Carine Sarfati, que já tinha criado roupas para clipes da artista.

Ah, e de Anamorphosée em si tem o clipe L’Instant X, figurino Gaultier:

Reparou que a música é mais roqueira?
O figurino quase não aparece no meio de toda essa espuma. E essa abertura lateral lembra o clássico vestido Versace da Liz Hurley, com os alfinetes, sabe?

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O da Liz Hurley, aliás, veio antes

Em 1994

Acho toda essa estética Farmer-Gaultier bem a cara dos anos 1990, assim como a da Madonna-Gaultier.

Será que com essa aposentadoria fervida do estilista, num desfile-show que bombou, a moda vai se inspirar nas coisas dele? Tomara, eu adoro.

Look do show Stade de France de 2009, com Mylène Farmer usando um macacão que reproduz os músculos da anatomia humana assinado por Jean Paul Gaultier

Look do show Stade de France de 2009, com Mylène Farmer usando um macacão que reproduz os músculos da anatomia humana assinado por Jean Paul Gaultier

Um elo entre Procura-se Susan Desesperadamente e... Marisa Monte

Kkkkkk esse título é maravilhoso, né?

Sim, existe um elo entre Procura-se Susan Desesperadamente (1985) e Marisa Monte. Você lembra do filme? Se nunca assistiu, deveria. E nem é pela Madonna, o longa é bem divertido, mesmo!

Um dos primeiros veículos da então princesa do pop do momento, a personagem Susan se mesclou com a de Madonna: ela era misteriosa, sexy, dominadora, desafiadora das convenções, jovem, com um estilo de se vestir arrojado, atrevida. Os homens a queriam e Roberta (Rosanna Arquette), a dona de casa entediada, queria ser como ela. Uma jaqueta que Susan vende em um brechó (Love Saves the Day em East Village, NY, fechado desde 2009) e que Roberta compra e usa faz com que a segunda assuma a identidade da primeira. O poder da moda, não?
A jaqueta foi vendida num leilão em 2014 pela bagatela de US$ 225.000.

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Illuminati, anyone?

Nas costas da jaqueta lê-se Novus Ordo Seclorum: a imagem é uma reprodução do selo da nota de dólar e quer dizer "nova ordem dos séculos” ou "nova ordem mundial”

Mas vamos para a ligação: nem todo mundo sabe mas Procura-se Susan Desesperadamente conta com diversas participações especiais. Por exemplo: a maravilhosa mulher que vende cigarros, do diálogo maravilhoso “Susan! Meu Deus, a gente achou que você estava morta” e a resposta “Eu estava em New Jersey”, é Ann Magnuson. Antes da drag queen Katya sonhar em ser Katya, Magnuson fazia uma personagem de cabaré chamada Anoushka, uma cantora soviética que interpretava músicas pop americanas com sotaque russo. A camarada também fazia parte de um grupo bem doido de música e performance chamado Bongwater. Ou seja, era da ceninha alternas de NY. Outra participação: Richard Hell, co-fundador do Television, é o cara que Susan dispensa logo no começo.

Agora, lembra da aparição dos trigêmeos que foram separados e depois se reencontraram e em 2018 viraram um documentário, o Três Estranhos Idênticos? É por um segundo, se você piscar você perde: Susan desce do carro para ir para a redação do jornal e se depara com eles.

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(Aliás, assistam o doc, é legal)

Logo depois disso, Susan pede um classificado no balcão. O cara lê: "Procura-se estranha que procura Susan desesperadamente” etc etc., e ela responde “Ela vai amar".
Esse cara é o elo. O nome dele, meus caros, talvez, se você for um geek da música, te desperte algo… é Arto Lindsay.

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Nessa época Lindsay também era parte da ceninha. Membro ativo da no wave do fim da década de 1970, fez parte do grupo DNA na guitarra e vocais. Atenção, é BEM experimental, tá?

Os pais de Lindsay eram missionários. Então, apesar de ser norte-americano, ele passou anos entre Recife e Garanhuns. Cresceu vendo o tropicalismo dando frutos. Isso causou um impacto que ficou mais óbvio na dupla que formou com Peter Scherer após Procura-se Susan Desesperadamente, a Ambitious Lovers. Entre as coisas que eles fizeram, está essa versão linda de É Preciso Perdoar do repertório de João Gilberto, de 1991:

Nessa época ele já estava bem mergulhado na música brasileira contemporânea: a dupla do Ambitious Lovers que produziu Estrangeiro (1989) de Caetano Veloso. E finalmente a gente vai chegando perto de Marisa Monte: o segundo álbum da cantora, aquele em que ela diz tchau para Nelson Motta para se encontrar ("Deixe-me ir / preciso andar / vou por aí / a procurar…"), é produzido por Lindsay. Mais (1991) reafirma o ecletismo de Marisa só que também mostra o lado compositora dela. O hit Beija Eu é dela, Arnaldo Antunes e Arto Lindsay.

Essa visão cosmopolita, esse lado quase experimental (em Borboleta, nas misturas de Ensaboa com músicas incidentais, e que também está em Estrangeiro) me parecem tanto vontades dos músicos como a cara de Lindsay. Isso, na minha opinião, ainda é reforçado em Verde Anil Amarelo Cor-de-Rosa e Carvão (1994), outro produzido por ele, um marco que reconstrói a MPB sob essa pecha eclética. A partir daí, toda nova cantora teria uma outra matriz de inspiração, especialmente na questão de repertório, por mais que gente como Nara Leão e a própria Elis Regina já trabalhassem nesses resgates de músicas "vintage", cada uma à sua maneira. A diferença, acredito, é que o novo vintage eram contemporâneos dessas cantoras: Marisa absorve pérolas de repertório de Tim Maia, Jorge Ben Jor, Roberto e Erasmo Carlos, sambas de Candeia, Paulinho da Viola, Jamelão.
Isso sem contar as participações especiais, né? Ryuichi Sakamoto nos teclados de várias faixas de Mais, Laurie Anderson em Enquanto Isso de Verde Anil Amarelo. Lindsay trabalhou com Sakamoto desde a década de 1980, e conhece e trabalha com Anderson desde a tal ceninha de NY.

Também é óbvio que Verde Anil Amarelo e mesmo o Mais são sementes do que depois virou o fenômeno Tribalistas.

Lindsay ainda produziu Barulhinho Bom (1996) e Memórias Crônicas e Declarações de Amor (2000). Universo ao Meu Redor (2006) ficaria nas mãos de outro meio-brasileiro-meio-gringo, o paulistano Mario Caldato Jr.

Voltando um pouquinho, só de brinks:
VOCÊ SABIA que Marisa Monte namorou Nasi? Sim, ele mesmo. O vocalista do Ira!. O relacionamento começou em 1988 e durou um ano e meio. Ou seja, antes do lançamento de Mais. Mas não, me parece que Ainda Lembro não seria uma música composta para ele - ou seria? Marisa divide os créditos da composição com Nando Reis, outro namorado dela. Foi um encontro babadeiro: toda a caligrafia do encarte de Mais, para você ter uma ideia, é de Reis!
A história conta que Marisa já tinha começado a escrever Ainda Lembro (eita…) e Reis ajudou a terminá-la.

Eu adoro: é pop gostoso, é um encontro muito feliz de vozes lindas (dela e de Ed Motta).
Resposta, do repertório do disco Siderado (1998) do Skank, é uma música que Reis fez sobre o término com Marisa. Interessante: já reparou na letra? "Bem mais que o tempo / que nós perdemos / Ficou pra trás também o que nos juntou / Ainda lembro / que eu estava lendo / só pra saber o que você achou / dos versos que eu fiz / ainda espero / resposta".
O “ainda lembro” é uma referência à outra música? Ele quer dizer que ainda espera uma resposta dos versos que ele fez em Ainda Lembro? E quais são os versos? Seriam os cantados por Ed Motta? “Eu errei com você / e só assim / pude entender / que o grande mal que eu fiz foi a mim mesmo"?

A digressão foi enorme! Sorry!
Por fim, fiquem com Onde Você Mora?, que originalmente foi gravada pelo Cidade Negra e também é uma composição de Marisa e Nando. Gosto muito dessa música <3 Ela bem que podia regravar em estúdio.

A música pop está reencontrando a espiritualidade

Não exerço muito a espiritualidade mas acho lindo.

Bom, está claro que Kanye West lançou um disco gospel nessas alturas do campeonato, certo?

Não vou colocar o embed aqui pois sinceramente achei chato para dedéu, se quiser pode procurar, fica à vontade

Não vou colocar o embed aqui pois sinceramente achei chato para dedéu, se quiser pode procurar, fica à vontade

E 10 entre 10 artigos sobre Jesus is King já apontaram três coisas: 1) West já fez músicas que flertaram com o gospel antes, mas a diferença é que ele se converteu "de corpo e alma”, negando palavrões e profanidades do passado, algo surpreendente para um dos (se não o) maior rapper da atualidade 2) O gospel na música pop não é novidade, de Elvis Presley a Whitney Houston passando por mil outros 3) Gospel nos EUA não é igual-qui-nem o gospel daqui, é relacionado à música negra, à luta pela igualdade racial.

ISSO TUTTO POSTO:
No Brasil VÁRIOS artistas já se relacionaram com uma música mais espiritual em algum ponto da carreira de maneira muito feliz. Vide…

Jorge Ben Jor (e a alquimia, nesse disco seminal; mais sua relação com São Jorge e outras paradas)

Baden Powell (e o candomblé; ele morreu evangélico renegando grande parte do repertório)

Roberto Carlos (bem na pegada gospel americana nessa música, que é um soul com referências cristãs)

Tim Maia (e a imunização racional do Universo em Desencanto)

Raul Seixas (do hinduismo nessa ao ocultismo)

Elis Regina (e o catolicismo dos romeiros)

Gilberto Gil (e a espiritualidade no geral)

Clara Nunes (e a umbanda)

A lista é interminável.

Agora parece que a música pop brasileira está reencontrando a espiritualidade. Começa pelo álbum de estreia da MC Tha, sobre o qual já falei aqui, que começa com um canto umbandista pop maravilhoso.

Mas passa também pelo lindo álbum novo do Emicida, AmarElo, cuja primeira música mistura pastor (Henrique Vieira) com atabaque e coro da Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos; cita na letra Buda, arruda, Barrabás, salmo e Ubuntu; traz violão remete ao da "igreja de pobre". É lindíssimo (e confesso que meu olho lacrimeja toda vez que ouço, de tão bonito). Ah, e conta com a voz de Fabiana Cozza, uma das mais lindas do Brasil hoje.

Suspiro.

Falando em chorar, já assistiu ao clipe da música nova da Linn da Quebrada?

É tão bonito e emocionado que nem sei. O coro poderoso, a letra, a apropriação da evocação espiritual em contexto que foge à lógica heteronormativa não para fins de provocação e confronto mas porque a espiritualidade é de todos. A música salva, sim.

(aliás, você já ajudou na vaquinha da Vicente Perrotta? saiba mais aqui)

Voltando para o pop internacional, uma das artistas que melhor usou as referências do catolicismo e atualizou-as é Madonna com o seu superhit Like a Prayer. No último álbum, Madame X, ela canta Batuka com as batucadeiras de Cabo Verde. Nessa salada toda, ela grava o clipe da música em Portugal - um tropeço, seria muito mais simbólico gravar na ex-colônia do que no ex-colonizador. Mas não deixa de ser poderoso: é música de trabalho com referências religiosas, é letra de protesto contra repressão. Gospel, portanto.

E você, já entrou em contato com seu lado espiritual hoje?

Esse David Bowie não me representa

Faz um tempinho que falei do filme do Elvis Presley por aqui. O rei vai ser interpretado por Austin Butler.
De lá para cá, assisti ao novo do Quentin Tarantino, Era uma Vez em… Hollywood (e não gostei).
Austin interpreta um dos papéis-chave do filme, um dos hippies da família Manson. E não é que ele me convenceu um pouquinho mais?

“Oh, did I?”

“Oh, did I?”

Mas fica calminho porque tudo ainda pode dar errado, viu, Butler?

Bom, como esse é o planeta Terra e por aqui não temos um minuto de paz, me aparece essa agora:

Para você não ter o trabalho de clicar, eis aqui Johnny Flynn como David Bowie:

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Er.

O filme Stardust vai trazer a primeira viagem de Bowie para os EUA, em 1971, onde ele construiu a persona Ziggy Stardust. Os produtores insistem que não é uma cinebiografia. É bom que não seja. E se não é, porque estão fazendo essa droga? Johnny, nada pessoal mas se nem numa foto conseguem capturar algo de Bowie em você, quiçá em película.
Se for para ser algo que não é uma cinebiografia mas no fundo é, fique com Velvet Goldmine (1998).

O famoso "aí sim".

Aproveitando a deixa, mais duas coisinhas:
1. Você viu a montagem brasileira de Lazarus? O musical de David Bowie estreou e eu, que odeio musicais, fiquei com vontade de ir. E tem Jesuíta Barbosa - um bom motivo para sair de casa, vai. Se alguém for, me conta se é bom?
2. Diz que Madonna and the Breakfast Club, o docudrama sobre o começo da carreira da cantora, ia estrear na rede Cinemark. Se estreou, já saiu e eu nem vi! Poxa. Aqui a atriz Jamie Auld ao menos se parece com a artista. O trailer até me convenceu? Confira por si mesmo: