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Round 6 não é Battle Royale e Jogos Vorazes, e eu vou explicar o porquê

October 04, 2021 by Jorge Wakabara in cinema, TV

De tempos em tempos, surgem uns fenômenos pop na Netflix que são muito interessantes. Fico atraído principalmente pelos que estão “fora do eixo”, ou seja, não são produções estadunidenses. La Casa de Papel nunca me pegou porque sempre achei de uma energia heterossexual demais (desculpem-me pela heterofobia), mas entendo o apelo. A alemã Dark já me complicou a cuca na primeira temporada - adorei, mas evitei seguir em frente por preguiça de entender a trama complexa (percebi que, quando lançou a segunda temporada, já fazia muito tempo que eu havia assistido à primeira e que eu teria que fazer ainda mais esforço para lembrar e compreender tudo hehehehe).

Outras, como a belga Noite Adentro, a islandesa Katla e a russa Cidade dos Mortos, tinham tudo para pegar, mas sei lá porque não pegaram tanto, apesar de terem fãs. Sou um deles: gosto e recomendo as três.

Mas estou aqui para falar de uma série coreana que virou um fenômeno pop e entrou para o topo dos conteúdos mais vistos da Netflix em todos os países, assim, de repente. TODOS mesmo. É ela: Round 6, ou o Jogo da Lula.

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Qual é o segredo? Acho que é uma junção de coisas. Visual instagramável dos cenários dos jogos (sério, acho que isso contou muito), figurinos e iconografia que chamam a atenção (as máscaras, a repetição do quadrado-triângulo-retângulo, o visual dos VIPs e do líder, os caixões em formato de caixa de presente), a impagável e marcante boneca Batatinha Frita 123 (como pode uma personagem que aparece tão pouco entrar para o imaginário pop com tanta força?), personagens minimamente carismáticos, gente-bonita-clima-de-paquera (a imigrante norte-coreana Sae-byeok, a “amiga” dela Ji-yeong, o policial Jun-ho, e o recrutador sem nome que dá tapas na cara de Gi-hun: modeletes, né? Sang-woo também é bem bonitão).

Mas volta a fita: para quem não sabe do que eu estou falando, Round 6 traz a história de um jogo criado para um seleto grupo de milionários (os VIPs, que, aliás, não são amarelos, vale salientar) assistirem. Os participantes são pessoas que estão devendo muito dinheiro e querem ganhar a enorme quantia do prêmio. Só que tem um detalhe: o jogo é mortal, literalmente. Você morre se não consegue chegar no objetivo de cada rodada (que são seis, daí vem o nome).

Outro fator importante é: quanto menos gente viva, mais dinheiro fica acumulado no prêmio e menos gente tem para dividi-lo.

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Te lembrou algo? Bom, parece Battle Royale mesmo. E não é à toa: o criador de Round 6, Hwang Dong-hyuk, já disse que o mangá Battle Royale (que veio antes do filme) foi uma das fontes de inspiração.
E os livros que viraram cinessérie Jogos Vorazes, todo mundo diz, parecem “bastante inspirados” em Battle Royale (sim, isso foi um eufemismo).
MAS todavia contudo porém digo logo: consigo identificar diferenças que ao meu ver são cruciais entre Battle Royale (e Jogos Vorazes) com Round 6. Vamos a elas.
Vão vazar uns spoilers. Teje avisado.

Aqui é vida real, bróder

Em Battle Royale, um regime totalitário fictício que organiza os torneios com estudantes do qual só um sai vivo, em resposta à delinquência juvenil (nunca entendi direito como um jogo mortal como esse vai controlar a delinquência juvenil de um país, mas vá lá, tudo pelo entretenimento). Jogos Vorazes se passa em um futuro distópico com uma capital, Panem, e 12 distritos - que ficariam onde hoje está os EUA.

Round 6 é uma história fictícia, claro, mas ela não se passa em realidade paralela ou no futuro de Seul. A referência é a nossa realidade (ou melhor, a realidade sul-coreana). Tanto que é explorado o absurdo que esse jogo significa - ou seja, os personagens dividem a indignação do que estão vivendo com a gente. Em Battle Royale, os participantes do jogo também ficam indignados, mas porque são eles que estão participando, de surpresa. E em Jogos Vorazes, é uma realidade dada: o jogo acontece faz anos.

As questões morais envolvidas, aliás, nos levam a outro ponto…

Show me the money

Em Battle Royale e em Jogos Vorazes, o jogo é composto de jovens armados lutando pela vida. Eles matam porque só um vai sobreviver.

Em Round 6, fica mais ou menos implícito que somente um sobrevive. Mas existem diferenças:
1. Está em jogo não apenas a sobrevivência, mas uma dinheirama (em reais: 208 milhões).
2. A maioria dos sobreviventes pós Batatinha Frita 123 entendeu tudo que estava em jogo (ou seja, compreendeu que era um jogo mortal), teve a chance de não participar e voltou a participar mesmo assim, voluntariamente.
3. Eles voltaram porque todos os participantes possuem grandes dívidas, ou seja: se eles saíssem do jogo sem dinheiro, voltariam para a mesma vida de antes, perseguidos por credores.

E existem mais nuances. Katniss Everdeen (Jennifer Lawrence) é um bastião da moral, Shuya Nanahara (Tatsuya Fujiwara) também não quer matar ninguém e só o faz em legítima defesa. Em Round 6 as coisas não são bem assim. Existe o vilão de fato (Deok-su, com direito à tatuagem de cobra no rosto para mostrar que ele é mau), a de moral bem questionável (Mi-nyeo, uma personagem cheia de estereótipos que é transformada pela atriz Kim Joo-ryoung em uma das mais complexas da série, uma mistura de street cred e traumas), o bom de coração puro (Ali, o estrangeiro ingênuo vítima do sistema). E os outros? Sang-woo (Park Hae-soo) também é um vilão? Você pode enxergá-lo como inescrupuloso em diversos momentos, mentiroso (pois engana a mãe no geral e o amigo de infância na hora do jogo). É o tubarão que se deu mal. Salva o grupo quando existe uma causa própria em jogo. No jogo das bolas de gude, ele engana e sofre. No quebra-gelo, ele já está, digamos, contaminado pela amoralidade e mata sem culpa, para não morrer.
Porém, chega o fim e… o que você lê ali? Era tudo pela mãe? Ou ele não conseguiria, como bom “porco capitalista”, ver todo aquele dinheiro desperdiçado?
Gi-hun (Lee Jung-jae), por outro lado, também é questionável. Existe uma linha que ele não cruza. Será? Entre ele e o velho Il-nam (Oh Young-soo), com quem fez amizade, ele escolhe a si mesmo. O velho não está mais lúcido, tem uma doença terminal. Mas isso quer dizer que ele merece menos que Gi-hun? Antes de entrar no jogo, o cara ainda roubava a mãe! Quer pior exemplo? Quando a saúde dela está gravemente ameaçada, ele se arrepende, mas o arco de redenção não é tão, digamos, limpinho e simétrico. E também não “topa tudo para salvar a mãe” - quando o novo marido de sua ex-mulher oferece a grana para que, em troca, ele esqueça da filha, Gi-hun não aceita. Mas participar de um jogo mortal… ah, aí tudo bem!

Round 6 nos deixa com mais perguntas do que respostas porque não fala somente de violência gratuita, do medo da vida humana ter um valor mais relativo. Round 6 é, claramente, sobre dinheiro. Sobre o sistema capitalista. E quem diria, isso tudo vindo da capitalista Coreia do Sul. A dívida é algo real, um problema social do mundo capitalista. Se você tivesse uma dívida desse tamanho, pergunta a série, você entraria num jogo desse?
É uma escolha. Ninguém te força a isso, como em Battle Royale e Jogos Vorazes.

Ainda: na moral dúbia de Round 6, a lógica do jogo não pode ser ameaçada, sob pena de morte. E a lógica é: não haverá benefícios a um ou mais jogadores. Todos precisam ter chances iguais, da mesma forma que se vestem igual e recebem a mesma refeição - meio como num regime comunista! Nesse sentido, é instigante: um jogo para divertir milionários se disfarça de justiça social até as últimas consequências. No fim, parece que esse senso de justiça acontece mais pelas apostas dos VIPs, que precisam de um jogo limpo para funcionar, do que pelos participantes.
Só que… não dá para ter certeza. E essas nuances dão ainda mais sabor e complexidade para a narrativa.

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Ela, mais uma vez: a memória afetiva

Todo filme teen possui, aqui e ali, algo de memória afetiva para alguém que já passou pela adolescência. Stranger Things não é o fenômeno que é só porque remete aos anos 1980 - ele remete a referências de infância e adolescência dos anos 1980.
Em Battle Royale, fica mais difícil ter essa leitura porque, logo no começo, o filme já diz a que veio - mesmo quem usou aqueles uniformes de colegial não vai ter essa sensação boa pois é um thriller tenso e sangrento, quase sem respiro. Jogos Vorazes passa longe de qualquer sensação de memória afetiva em seu universo fictício construído.

Round 6 é um jogo de adultos. Mas os adultos se vêem “brincando” em jogos infantis. E são jogos antigos, desses que a garotada do videogame não brinca mais. Claro, a referência é coreana (nunca tinha ouvido falar de colmeia, por exemplo), mas dá para assimilar a ideia mesmo assim. O playground é universal. Quando Gi-hun lembra do jogo da lula em si, deixa o clima de nostalgia claro.

Game over?

Em Battle Royale, as batalhas terminam mesmo? O fim é claro: aquele jogo foi corrompido, o objetivo inicial não se atingiu (ou foi atingido? Um dos maiores mistérios do cinema pop moderno: o que os personagens Noriko Nakagawa e Kitano conversaram naquela misteriosa cena de flashback?). A sequência de BR dá a entender que sim, as batalhas terminaram, mas o regime totalitário continua. Na trilogia de Jogos Vorazes, como uma “boa” história de herói, o bem vence o mal e o regime é destruído.

Em Round 6, o fim é aberto. Talvez exista uma segunda temporada? Não sei se isso daria certo. Mas o fato é que o jogo em si continua, mesmo sem Il-nam, mesmo com Jun-ho (Wi Ha-joon) tentando denunciá-lo. Os VIPs saem incólumes (a pista deixada pela bomba que Jun-ho descobre no túnel dos mergulhadores não dá em nada, surpreendentemente), o líder sai incólume, o sistema inteiro continua de pé com pouquíssimas avarias.

Gameficação

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Esse item é mais sobre o que Round 6 tem em comum com essas duas outras obras de ficção do que sobre suas diferenças, mas acho que realça o meu ponto de que ela é mais que uma cópia. Talvez todas façam parte do que já está se concretizando como uma “tradição” narrativa.

Battle Royale não foi a primeira nem a última história que segue esses preceitos de jogos mortais. Aliás, não citei várias outras referências aqui, de jogos de sobrevivência. Tem a própria franquia Jogos Mortais, que começou em 2004. Tem a série japonesa Alice in Borderland, na Netflix.

Odeio esse termo gameficação, mas é isso mesmo: me parece que, quando a narrativa se constrói claramente como um jogo, ela é mais claramente assimilada.
Aí aparecem algumas questões:
. Todo jogo precisa ter um motivo e um objetivo.
. Todo jogo tem regras.
. Algumas vezes, existem consequências para regras burladas. Em outras, não.

O excesso de narrativas assim me soa preocupante. A vida real não é um jogo, não é um BBB nem um Jogos Vorazes. A vida não é filme, você não entendeu, diria Herbert Vianna. Encarar a vida como um jogo é empobrecê-la e banalizá-la.
Mas, enfim, esse sou eu e a minha humilde opinião.

Já existiram tentativas de adaptação de Battle Royale, inclusive para a TV. Elas nunca foram para frente principalmente por causa da violência gratuita e polêmica. Em tempos de Round 6, pós-Tarantino (que é um grande fã declarado de BR), de guerra do streaming e de exploração de franquias até o esgotamento… Uma adaptação de Battle Royale pode estar mais próxima do que a gente imagina.

Extra

GEEEEENTEEEE! Aí me fizeram um espaço instagramável na Coreia do Sul com o tema Round 6, com direito a Batatinha Frita 123 e tudo?

Achei o máximo mas não passaria perto. Eu hein, vai que me pegam para jogar um lance mortal…

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October 04, 2021 /Jorge Wakabara
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cinema, TV
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Coisas que fiquei pensando depois de ver Nomadland e Minari

March 02, 2021 by Jorge Wakabara in cinema
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Nomadland é um filme norte-americano de 2020 dirigido por Chloé Zhao.
Minari é um filme NORTE-AMERICANO (tá, Globo de Ouro?) de 2020 dirigido por Lee Isaac Chung.

Ambos aparentemente não tem nada em comum.
Aparentemente.

. Tanto Nomadland quanto Minari não são filmes que se passam em metrópoles. São filmes não-urbanos. São filmes rurais? Não saberia bater esse martelo.
. Minari é protagonizado por pessoas amarelas. O diretor, Chung, é um norteamericano amarelo, descendente de coreanos. Nomadland é protagonizado por uma mulher branca e tem um elenco majoritariamente branco, e foi dirigido por uma mulher amarela. Zhao é chinesa.
. Chung deve ser o diretor da versão live action do anime Your Name, que todos amam e eu acho um amontoado sem charme de clichês. Zhao é a primeira mulher amarela a dirigir um filme da Marvel: Os Eternos. Ela também é a primeira mulher amarela a ganhar um Globo de Ouro de Melhor Direção por Nomadland.
. Fern, a personagem de Frances McDormand em Nomadland, e a avó de Minari, interpretada por Yuh-jung Youn em Minari, seriam amigas caso se encontrassem em uma realidade paralela.
. O xixi é um dos temas de Minari. O cocô é um dos temas de Nomadland.
. A casa de Fern e a casa da família de Jacob (Steven Yeun) ficam em cima de rodas. A da mulher branca Fern anda por aí, desbrava os EUA. A da família amarela se finca em um pedaço de terra, recusa-se a sair. Quer criar raízes.
. A natureza em Nomadland é vasta, enorme, grandiosa. A natureza de Minari é linda, extremamente verde, contida num pedaço de terra, modificada com um trator, cultivada. Minari em si é um vegetal usado na culinária coreana.
. Minari, o vegetal, nasce na água. Grande parte de Nomadland se passa no deserto.
. Fern é nômade. Jacob é agricultor, o contrário do nômade.
. Fern trabalha em bicos. Lanchonete. Empacotadora da Amazon. Limpa banheiro do camping. Jacob e Anne (Noel Cho) identificam o sexo de pintinhos e os separam. Nem sei se existe um nome para essa profissão em português. Jacob é mais rápido nisso que Anne.
. Fern não tem família. É viúva e tem amigos que vai arrecadando na sua jornada. Jacob e Anne só tem a família. Anne não consegue fazer amigas.
. Fern tem uma irmã e tem um homem interessado nela, mas ela prefere ficar sozinha depois da morte do marido. Jacob e Anne brigam muito. Anne chama a mãe para morar com ela. Eles vivem em conjunto.

. Fern perdeu tudo e decidiu viver uma vida nômade. Jacob e Anne juntaram o pouco que tinham para tentar uma nova vida. Uma vida dura que te prende à terra arada, plantada, à colheita.

. Os dois filmes falam sobre o sentido da vida. Ou sobre como dar sentido à vida.

Como você dá sentido à sua vida?
Onde você se sente em casa?

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March 02, 2021 /Jorge Wakabara
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cinema
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Pulgasari, o Godzilla norte-coreano

August 09, 2020 by Jorge Wakabara in cinema

Você conhece a história do Shin Sang-ok e da Choi Eun-hee? É uma loucura. Kim Jong-il, quando ainda era o filho do ditador norte-coreano e não o ditador em exercício, tinha um sonho: fazer filmes. Ele curtia muito esse mundo do cinema e queria uma produção cinematográfica de qualidade na Coreia do Norte, mas sabia que, para isso, ia precisar de "ajuda” de fora. Então decidiu sequestrar Sang-ok e Eun-hee, um casal de diretor e atriz sul-coreanos que já fazia muito sucesso na Coreia do Sul!

A história toda é contada no documentário Os Amantes e o Déspota, lançado em 2016.

Kim Jong-il no centro, com o casal que ele queria que melhorasse a indústria cinematográfica norte-coreana

Kim Jong-il no centro, com o casal que ele queria que melhorasse a indústria cinematográfica norte-coreana

Só que os dois já estavam separados quando tudo aconteceu – Sang-ok era mulherengo, teve uma amante na cara dura e todos sabiam. Eun-hee foi convencida primeiro a ir pra Hong Kong, em janeiro de 1978. De lá, a sedaram e levaram pra Pyongyang. Sang-ok, que seguia amigo dela apesar de divorciado (e ela era a mãe dos filhos deles, eles tinham um casal de crianças adotadas), diz que ficou preocupado com o desaparecimento e foi atrás dela em Hong Kong em julho. E também sumiu.

Sang-ok morreu em 2006. Eun-hee em 2018.

Durante o período em que ficou na Coreia do Norte, entre 1978 e 1986, Sang-ok dirigiu 7 filmes no país e funcionou como uma espécie de diretor de produção de mais 13. Tem quem ache que na verdade ele foi por livre e espontânea vontade porque achava que teria recursos à vontade para fazer os filmes que queria, e as coisas não iam muito bem em 1978 para ele na Coreia do Sul. De qualquer forma, ele e a ex-mulher "desertaram" em 1989, durante um festival de cinema em Viena, pedindo asilo na embaixada estadunidense.

Já existiam filmes norte-coreanos. Mas a qualidade era muito ruim – eram baseados em propaganda pró-regime, perdendo o poder da narrativa cinematográfica, sempre focados em "sacrifício para o Grande Líder" e coisas assim. Ou seja: eram medíocres. Então Kim Jong-il decidiu chacoalhar as coisas a partir de 1968, se metendo a produzir. Kkot Panum Chyonyo, por exemplo, impressionou tanto que ganhou prêmio em festival da Tchecoslováquia.

Propaganda por propaganda, o filme de Sang-ok de 1963, Ssal, falava das políticas do então presidente da Coreia do Sul, Park Chung-Hee, sobre modernização da agricultura. Mas depois disso a relação entre os dois azedou, a ponto de Sang-ok, em 1978, estar com a sua produtora cinematográfica proibida de funcionar a mando do governo. Portanto, Sang-ok não estava conseguindo filmar naquela época. Vem daí a desconfiança a respeito da veracidade de seu sequestro: tem quem ache que ele foi por livre e espontânea vontade.

Três coisas contam a favor de Sang-ok e sua história:
. Ele ficou sem filmar entre 1978 e 1983, tempo em que ele explicava que foi mantido em campo de concentração passando por lavagem cerebral para se tornar um aliado do regime.
. Existem fitas que supostamente foram gravadas em reuniões e ligações entre Sang-ok e Kim Jong-il. Elas serviram de prova quando Sang-ok e Eun-hee finalmente pediram asilo nos EUA. Tem quem ache que são forjadas. E o que Jong-il diz na gravação para provar que havia acontecido um sequestro é, no fundo, bem sutil: algo como “pedi para eles trouxessem vocês".
. Os filhos. Eles deixaram dois filhos para trás.

Mas existem pontos contra a versão de Sang-ok, fora o fato de que ele não estava fazendo filmes na Coreia do Sul e poderia fazer filmes na Coreia do Norte:
. Uma coletiva de imprensa no Karlovy Vary, festival de cinema da Tchecoslováquia (que existe até hoje, agora na República Tcheca), trouxe Sang-ok declarando que foi voluntariamente para a Coreia do Norte, ao lado de Eun-hee, e que qualquer jornal sul-coreano que falasse o contrário estaria mentindo.
. O diretor tinha muita liberdade de expressão. O título do segundo filme que dirigiu por lá, por exemplo, Sarang, sarang naesarang (1985), pode ser traduzido como Amor, Amor, Meu Amor. O termo é tabu em obras assim na Coreia do Norte. Amor? Só pelo Grande Líder, oras! Mas deixaram Sang-ok fazer essa provocação em prol da arte. Não parece um artista sendo forçado a fazer coisas por um ditador. O filme também traz o primeiro beijo do cinema norte-coreano (eita, que povo retraído).
. Eles filmaram uma parte das cenas de Sincheongjeon (1985) em Munique. Por que não desertaram nesse momento?

O que eu acho? Sei lá. Acho meio esquisito duvidar dessa história tão doida. Será que alguém realmente inventaria tudo isso?

No exílio nos EUA, Sang-ok dirigiu um filme. Era 3 Ninjas em Apuros (1995), da cinessérie 3 Ninjas. Ele o assinou sob o pseudônimo Simon Sheen.

Cena de 3 Ninjas em Apuros

Cena de 3 Ninjas em Apuros

Sang-ok voltou definitivamente com Eun-hee para Coreia do Sul nos anos 1990, apesar de seu medo de ser descreditado. Eles seguiram novamente juntos depois de se reencontrarem na Coreia do Norte até Sang-ok morrer.

Finalmente: Pulgasari (1985)!

Inspirado em kaiju e principalmente no Godzilla, o maior kaiju de todos, surgiu essa história de fazendeiros que se revoltam contra a decisão do rei de uma Coreia medieval de tomar-lhes as ferramentas de ferro usadas para o plantio e cozinha com o objetivo de fazer mais armas. Um ferreiro se recusa a fazer espadas com esses instrumentos e acaba devolvendo-os para os aldeões. O representante do rei, em represália, o prende e não lhe dá de comer até ele contar onde foi parar todo o ferro desaparecido. A filha dele consegue jogar arroz pela janela da prisão, mas no lugar de comer ele usa o arroz para moldar um monstrinho e implora aos deuses para que eles o ajudem a salvar a aldeia. Ele morre de fome.

O monstrinho vai parar na casa da filha do ferreiro. Ela fura o dedo costurando e deixa pingar sangue no monstrinho. Isso faz com que ele crie vida, comece a comer ferro e, quanto mais come, ele vai crescendo até se transformar no kaiju Pulgasari.
A história parece pueril e é, mas se a gente pensar nos efeitos especiais disponíveis naquela época e no próprio Godzilla, é bem feitinha. Eu, como gosto de Jaspion, achei o filme meio arrastado mas divertido e não me importei com os efeitos – acho até que dá um charme.

Pulgasari também é inspirado em uma lenda que já existia na Coreia do Norte com o mesmo nome ou a variante Bulgasari. Já era um bicho que comia metal. A Toho, produtora japonesa responsável pelo Godzilla, ajudou nos efeitos especiais – quem usou a fantasia de borracha foi Satsuma Kenpachiro, que já tinha vestido a fantasia de Godzilla!

Kenpachiro usando a roupinha de Pulgasari

Kenpachiro usando a roupinha de Pulgasari

O filme virou cult, chegou a passar nos cinemas do Japão anos depois e apareceu em VHS nos EUA.
Tem quem enxergue uma metáfora negativa para Jong-il escondida em Pulgasari: o monstro representaria esse regime que ajudou mas depois se transformou em carrasco, exigindo mais e mais ferro do povo. Ao mesmo tempo, a história fala sobre o poder do coletivo oprimido contra o seu opressor.

Pulgasari foi o último filme dirigido por Sang-ok na Coreia do Norte.

Em japonês: PURUGASARI

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August 09, 2020 /Jorge Wakabara
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Mystic Pop-Up Bar: a série mais perfeita do momento (para mim, pelo menos)

July 04, 2020 by Jorge Wakabara in TV

Ignora o trailer, ele não é bom.

Mystic Pop-Up Bar é um dorama que chegou na Netflix em maio e acabou de "terminar” (eles estavam subindo dois episódios por semana). Logo de cara ela é um choque porque em teoria eu não gosto muito de dorama. Será? Mystic Pop-Up Bar me conquistou assim que assisti ao primeiro episódio. Por quê? É isso que vou tentar explicar nesse post.

(Para quem não sabe: dorama é o nome que se dá para séries que podem ser japonesas, chinesas ou, voilà, coreanas, como é o caso dessa. Tem gente que prefere chamar de k-drama, e que só chama de dorama quando é série japonesa porque o nome vem da pronúncia japonesa para "drama" em inglês. O dorama é geralmente enxuto, com um pouco mais de dez episódios, passa uma ou duas vezes por semana e tem uma estrutura que fica entre a da série norte-americana e da novela brasileira, com mais de uma trama correndo paralelamente mas não necessariamente inúmeras, tal qual o folhetim daqui.)

Os personagens principais: Guibanjang (Choi Won-Young), Wol-Ju (Hwang Jung-Eum) e Han Kang-bae (Yook Sung-jae)

Os personagens principais: Guibanjang (Choi Won-Young), Wol-Ju (Hwang Jung-Eum) e Han Kang-bae (Yook Sung-jae)

Misture tudo

Mystic Pop-Up Bar é como uma música de k-pop que passa por vários estilos e melodias e faz disso uma característica carismática. Tem drama histórico, romance meio adolescente, comédia pastelão, espiritismo, ação (com luta e tudo). Como pode?

Dei play da primeira vez porque não li a sinopse e achei que ia ser algo meio Midnight Diner, uma série japonesa que eu amo, mas eu não poderia estar mais errado nesse primeiro julgamento. É como se O Rei e Eu, A Viagem, Trapalhões e Matrix tivessem um filho com argumento escrito por John Green e Carlos Lombardi, mas Lombardi foi proibido de tirar a camisa dos protagonistas.

E o resultado surpreendentemente não é ruim!

Uma sinopse muito especial (que não dá conta de tudo)

Vou tentar resumir mas é difícil, viu? Espero que dê certo.
Há 500 anos, uma jovem xamã, Wol-Ju, se mete num rolê e acaba se apaixonando por um príncipe. O romance é um tabu, alguém assassina a mãe dela para fazer com que ela se afaste e a coitada acaba se matando. SÓ QUE ela se enforca na Árvore Sagrada que protegia um povoado, causando assim a morte dessa árvore e consequentemente de 100.000 pessoas na guerra. Como punição pós-vida, ela recebe a missão de resolver as mágoas de 100.000 pessoas nos 500 anos seguintes – caso contrário, ela vai queimar no inferno do esquecimento.

Para atrair as pessoas com mágoas, ela tem um Mystic Pop-Up Bar, uma tenda de comida e bebida que aparece e desaparece magicamente, e um líquido que parece uma bebida alcoólica mas que faz a pessoa cair no sono, permitindo com que Wol-Ju entre no sonho dela (o que eles chamam de mundo onírico) e resolva as mágoas ali, no inconsciente.

Paralelamente, a gente conhece Han Kang-Bae, um jovem órfão de origens simples que tem um dom esquisito: todo mundo que o toca fica com ataque de sinceridade e diz na lata o que está incomodando. Quando os caminhos de Wol-Ju e Kang-Bae se cruzam, ela está quase terminando sua meta de 100.000 e percebe que esse dom do rapaz pode ajudá-la a descobrir (e resolver) mágoas mais rapidamente.

Você achou a sinopse muito longa? Pois isso é apenas o começo, acredite. Deixei muita coisa de fora. POIS É.

Parece um astro de k-pop mas é o Kang-Bae num raro momento em que ele não está PASMANDO (sério, ele parece uma criança de 10 anos)

Parece um astro de k-pop mas é o Kang-Bae num raro momento em que ele não está PASMANDO (sério, ele parece uma criança de 10 anos)

Um bom recheio

Não sei que fórmula estranha é essa, mas 12 capítulos de mais de uma hora cada surpreendentemente parecem não ter a famosa barriga – aquela enrolaçãozinha básica. Talvez por causa dessa mistura de gêneros e uma história que é bem complicadinha, cheia de detalhes, Mystic Pop-Up Bar não entedia. Faça as contas: mais ou menos uma mágoa por episódio para Wol-Ju resolver, a própria história de Wol-Ju, detalhes sobre o funcionamento do além-vida, o mistério sobre o dom de Kang-Bae e a vida amorosa dele, o passado do gerente do bar Guibanjang (ele era detetive da polícia do pós-vida), a incrível e absurda chefona Yeomradaewang (Hye-ran Yeom), a atrapalhada dona dos sonhos de gravidez Samshin (Oh Yeong-Sil), o compreensivo e companheiro chefe de departamento da Morte Yeom (Joon-hyuk Lee)… O elenco parece enxuto mas na verdade é marcante, e por isso você não se perde.

OLHA ESSA DEMÔNIA! A chiquérrima Yeomradaewang na frente de Wol-Ju

OLHA ESSA DEMÔNIA! A chiquérrima Yeomradaewang na frente de Wol-Ju

#Magoei

As mágoas que Wol-Ju precisa resolver não são #whitepeopleproblem (mesmo porque coreanos são amarelos). Amoooor, a coisa é séria: envolve morte, filho perdido, amor impossível, traição... Eles não brincam em serviço. Não é tipo briga de namoradinho nem "tô cansado do meu trabalho". Drama de verdade, sabe? Alguns são de chorar, mesmo.

Caricatices

Se por um lado os dramas são pesados, por outro, as interpretações tem uma escala de tons bem grande: vão do sério tenso ao escrachado. A própria Hwang Jung-Eum, que faz a Wol-Ju, é maravilhosa, de cair o queixo. Ela consegue ser tão palhaça quanto a Chiquinha do Chaves em um momento e séria como Sally Field no próximo. Não dá nem para conceber. No começo achei que isso ia me incomodar, mas é só embarcar: a série é uma fantasia doida e ela está apenas comandando a zona.

Fiquei na dúvida para saber se Jung-Eum é a nova rainha do camp ou se esse tipo de interpretação é normal no dorama coreano. A VER.

Wol-Ju: uma maluca no pedaço

Wol-Ju: uma maluca no pedaço

Tour de force do figurino

Quem é esse figurinista? Se alguém descobrir, me avisa porque isso é simplesmente chocante. Ele conseguiu arrasar o tempo todo. No contemporâneo, no histórico e principalmente nas releituras de hanbok usados por Wol-Ju (vide foto acima). Hanbok, para quem não sabe, é o look tradicional coreano e segue sendo usado até hoje em ocasiões semiformais e formais, assim como o quimono no Japão. Uma característica que só de bater o olho você já percebe é que o hanbok recorta a silhueta logo abaixo do busto e abre em evasê. Para Wol-Ju, isso aparece muitas vezes em forma de tops transpassados mais curtos, fora os hanbok estilizados. Mas Wol-Ju também usa outras coisas: blazer amplo, por exemplo, é uma peça-chave dela.

Mas para mim nenhum figurino bate os do príncipe herdeiro (Geon-Hee Song). Guarda-roupa dos sonhos. E que boy bonito!

Um príncipe bem vestido

Um príncipe bem vestido

Reviravoltas

Uma sequência básica de plot twists sempre foi um dos segredos do formato de folhetim. Só que como a história aqui é muito maluca, você até desconfia de onde o tiro vai vir mas nunca tem certeza.

Agora segue um prêmio para quem chegar no fim da série e gostar: você vai me agradecer por esse vídeo que estou colocando aqui.
A música é Tears e a cantora (é ela mesma quem aparece, como você pode desconfiar) é a So Chan-whee. O hit fez sucesso há 20 anos, em 2000. Se você assistir ao dorama vai entender tudo.

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July 04, 2020 /Jorge Wakabara
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SsingSsing, uma banda xamânica, folclórica, glam roqueira!

June 24, 2020 by Jorge Wakabara in música

Essa foi uma dica do Ricardo Antunes!

Mais do que uma banda de drag queens, a sul-coreana SsingSsing se conecta a uma cultura mais ancestral: a dos xamãs da Coreia do Sul. O xamanismo, que veio antes do budismo no país, conta com sacerdotes que precisam se conectar com espíritos masculinos e femininos. Na verdade, a intersexualidade é ligada à espiritualidade e conexão com o divino em várias culturas ao redor do mundo.
No xamanismo coreano os homens são chamados baksu (e as mulheres, mudang; existem outros termos dependendo da região).

Um baksu do xamanismo sul-coreano

Um baksu do xamanismo sul-coreano

Mais do que incluir uma persona feminina na performance, o vocalista Hee-moon Lee já declarou em entrevistas que queria trazer algo mais gender neutral para o palco.
Será que o nome também vem de cross-dressing, fora o óbvio "CantarCantar"?

Já no estilo musical, o SsingSsing se inspirava em minyo, o estilo musical folclórico coreano (que por sua vez tem o mesmo nome do estilo musical folclórico japonês, me levando a crer que existe uma ponte cultural aí). Pelo que entendi, eles pegaram a melodia e o jeito de cantar do minyo e incluíram instrumentos contemporâneos (guitarra, bateria) e referências de glam rock, ska, disco music. Lembra o processo (que teve resultados bem diferentes) do enka japonês, que saiu do folclórico da escala pentatônica mas usa instrumentação de orquestra clássica e instrumentos “ocidentais".

E por que estou falando no passado ao me referir à banda? Infelizmente o SsingSsing acabou em 2018.

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June 24, 2020 /Jorge Wakabara
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