Dorgival Dantas hit maker!

Se eu fosse a Pabllo Vittar eu lançava um songbook dedicado ao cancioneiro de Dorgival Dantas.
Seríssimo.

E se você não sabe quem é Dorgival Dantas, sem dúvida já ouviu pelo menos uma música que ele compôs.

Lindas madeixas dignas de Wesley Safadão roots (não o Nutella de hoje em dia)

Lindas madeixas dignas de Wesley Safadão roots (não o Nutella de hoje em dia)

Na minha opinião é simplesmente chocante que qualquer pessoa que queira fazer sucesso na música nacional hoje não bata na porta de Dorgival para pedir um hit. Ele é o dono de vários. Nascido no Rio Grande do Norte, foi Dorgival quem compôs diversos sucessos de bandas de forró nos anos 1990. Ele chegou em Fortaleza em 1997 e virou o diretor musical do Pirata, que é um lugar bem famoso da cidade. E só foi lançar um álbum solo oficial em 2006, chamado O Homem do Coração - acho que é uma brincadeira com um de seus maiores hits, Coração, que também é a minha música preferida dele. Em 2018 ele lançou um DVD com uma versão lentinha no piano - oi, Lady Gaga!

Mas minha versão preferida é do Aviões do Forró mesmo:

(Eu Não Vou Mais Chorar, que aparece nesse medley do Aviões, também é do Dorgival)

As músicas de Dorgival são simples, mas com melodias muito atraentes e a sua característica sanfona, instrumento-chave do forró mesmo na sua mais moderna versão. Duplas sertanejas hoje em dia também abusam dela. Como é o caso de Jorge e Mateus em outro hit do Dorgival, Pode Chorar:

As letras são de fácil identificação, mostrando várias situações de relacionamento amoroso (geralmente o término, fase de negação, pedido de volta…). Um desenvolvimento do sertanejo dos anos 1990, coloquemos assim. Uma frase que ele costuma dizer em shows é: "No dia que eu tiver que cantar alguma música falando palavrão ou ofendendo alguma mulher, eu prefiro pendurar a minha sanfona e deixar de cantar e tocar.”
Dorgival já disse em entrevista que considera o fato de ser compositor como um dom de Deus, que não escolheu a profissão. "Depois você vai juntando um pouquinho de tudo nessa vida, da gente, de quem a gente conhece, das coisas que a gente vê. O compositor tem essa facilidade. Transforma tristeza em alegria e às vezes, em momentos de muita felicidade, ele coloca as pessoas para refletir um pouco para não perder os melhores momentos da vida.” Veja o vídeo completo no site Leia Já.
Abaixo: Tá na Cara, música de Dorgival gravada por Frank Aguiar.

Pelo que entendi foi só a partir do último álbum e DVD ao vivo do Dorgival, lançado faz pouco, em março desse ano, que alguns dos artistas mais incensados da MPB se aproximaram dele. Fagner e Elba Ramalho fizeram duetos com ele ao lado de outros artistas bem populares como Thiaguinho, Xand do Aviões, Gusttavo Lima e Leo Santana.

Acho que o público do sudeste só começou a prestar um pouco de atenção em Dorgival com o estouro dessa música:

A música entrou na trilha sonora da novela Caminho das Índias (2009) e chegou a ganhar uma versão da Tiê no ano seguinte.

(Prefiro a do Calcinha Preta, mas essa é bonitinha)

Outras músicas de Dorgival já apareceram em trilhas sonoras da Globo, mas sem o mesmo impacto absoluto. É o caso de Barrigudinha do Aviões que inclusive chegou antes de Você Não Vale Nada na novelinha Malhação, a própria Pode Chorar com Jorge e Mateus em Araguaia
Não sou um grande conhecedor, mas na minha opinião os melhores intérpretes de Dorgival são Solange e Xand no Aviões do Forró. Aqui abaixo, um medley de 3 músicas dele com o grupo: Paixão Errada, Destá e Valeu.

E convido vocês a seguirem o Insta do Dorgival. É maravilhoso.

Quem gosta de cultura pop precisa ter essa referência. Viva Dorgival!

BÔNUS: O filho de Dorgival, Cícero Dantas, cantando Coração em versão rock. Play:

As capas de disco de Andy Warhol

Falei de capas de disco faz um tempinho - mais especificamente nas ilustrações clássicas de Elifas Andreato para a MPB.
É interessante refletir sobre essa questão das capas - hoje, numa época em que CD está sendo superado, o suporte para a arte gráfica é um thumb no celular. Esse é o assunto desse episódio do Popcast, o podcast sobre universo pop do New York Times:

São bem interessantes as reflexões que o apresentador Jon Caramanica e o convidado Teddy Blanks fazem. Incluem a transição de capas antes pensadas para a mídia vinil, grandes, para o formato de CD, pequeno; e ainda para Spotify, Apple Music e congêneres depois, menor ainda. Essa arte, uma porta de entrada, ainda é necessária? Ela não poderia ter outro formato? Quais capas funcionam em todos esses tamanhos? E no que o designer precisa pensar em cada um dos casos (ou em todos)?
Eles usam muito como exemplo a capa do álbum novo de Young Thug, o So Much Fun.

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Essa aqui!

São diversos Young Thugs formando a imagem maior do Young Thug

Lembrando que a venda de vinil pode ultrapassar a venda de CDs em 2019 - coisa que não acontece desde 1986! A notícia é da Rolling Stone. Mudanças no trabalho de designer à vista novamente?

Refletindo sobre isso e também pensando nas minhas capas de vinil preferidas, cheguei à conclusão que algumas das minhas preferidas são assinadas por ninguém menos que Andy Warhol. A peça-chave da pop art fazia comentários sobre a reprodução de imagens e a estética do capitalismo, porém eles não eram necessariamente críticas negativas. Aliás, pelo contrário: parecia haver um encantamento em Warhol pela fama, pela reprodutividade do seu próprio trabalho, pelo comércio e indústria. Vou mostrar aqui algumas das capas que ele criou e que gosto. Vamos a elas:

#1: Sticky Fingers (1971) - The Rolling Stones

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O zíper era funcional, mas uma vez usado, já era - coisa que fez com que as edições nas quais o zíper ainda não está para baixo sejam caríssimas no mercado de revenda. Dizem que a ideia foi apresentada por Warhol para Mick Jagger numa festa em 1969 e na verdade Craig Braun é quem teve que colocar a mão na massa para fazer a coisa ficar funcional. Por baixo, tem uma cueca (é, não se anime); e o modelo não foi Jagger como muita gente pensa (é, não se anime parte 2). Ninguém tem certeza de quem é esse modelo, na verdade - pode ser Joe Dallesandro, um dos musos de Warhol… ou não. Risos.
Uma outra curiosidade é que foi nesse álbum que também estreou o famoso logo da língua dos Rolling Stones - criado por John Pasche e guardado no layout de dentro da capa.
Braun também seria o hands on de outra capa com conceito de Warhol. Essa aqui…

#2: The Velvet Underground & Nico (1967) - The Velvet Underground

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A gente nem sempre pensa nisso, mas esse álbum é algo completamente exótico se você refletir. Ele veio em 1967, antes de maio de 1968 (!), de Abbey Road dos Beatles (!!), e um pouco depois do começo do futurismo na alta-costura com André Courrèges, Paco Rabanne e Pierre Cardin. Warhol era muito moderno - costumamos juntar tudo no mesmo balaio dos anos 1960 esquecendo que uma década tem 10 anos e várias das obras mais importantes dele, que refletiam a sociedade consumista com uma estética muito característica e depois influente, são do começo dessa década! E o Velvet Underground, banda intimamente ligada a Warhol, também era muito moderno: na música, no look, na atitude. Modernos até hoje. Uma loucura.
Isso tudo para dizer que esse álbum da banana é a culminação tanto da estética de Warhol que já existia quanto do clima vanguardista do Velvet Underground. E o toque de uma fonte cursiva funcionando como uma assinatura de uma obra de um artista é tudo. Como se fosse mais importante o nome dele que o da banda, inexistente aqui. Que tal?

#3: Menlove Ave (1986) - John Lennon

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O segundo álbum póstumo de Lennon, produzido sob a supervisão da viúva Yoko Ono. Dizem que Warhol na verdade fez essa ilustração em 1980, meses antes da morte de Lennon. Yoko deu esse nome ao álbum em referência ao endereço da infância do artista, a Menlove Avenue em Liverpool, porque as músicas, para ela, remetem ao som dos primórdios do rock 'n’ roll que ele ouvia nessa época.

#4: Querelle - Ein Pakt Mit Dem Teufel (1982) - Peer Raben

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Acho linda: o destaque da língua vermelha na capa da trilha sonora do clássico homoerótico do cineasta Rainer Werner Fassbinder inspirado na obra de Jean Genet é supermoderno. Mas o casal da capa, na minha humilde opinião, é claramente mais jovem que os retratados no longa. Não consegui achar informações a respeito dela na internet, mas desde que a vi, sempre achei belíssima.

#5: The Academy in Peril (1972) - John Cale

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Ao que tudo indica isso foi uma troca de gentilezas: Cale deixou Warhol usar a música Days of Steam no seu filme Heat (1972), e Warhol em troca criou essa capa. Gosto muito da ideia, que tinha profundidade também: todas essas janelinhas dos "slides”são vazadas, e as imagens fotográficas foram impressas na capa de trás.

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Cale era integrante do Velvet Underground. Andy Warhol nunca fez uma capa de álbum para Lou Reed.

#6: Reading From the Glass Menagerie, The Yellow Book and Five Poems (1960) - Tennessee Williams

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O que adoro nessa capa é que, junto com as ilustrações do Andy Warhol, acompanha a caligrafia de ninguém menos que a mãe dele, Julia Warhola. Acho o resultado, junto com essa cartela do degradê, muito delicado. Apesar dessa ilustração só ter saído em edição de 1960, a gravação do dramaturgo Williams foi feita em 1953. Especula-se que os desenhos são de 1957. Warhol também desenhou um unicórnio muito parecido para uma campanha de 1957 da estilista Schiaparelli.

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Warhol e Williams eram meio que do mesmo rolê. O dramaturgo também era amigo próximo de Truman Capote.

#7: The Smiths (1984) - The Smiths

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O álbum homônimo da banda de Morrissey e Johnny Marr na verdade é um caso a parte porque não se trata de um design assinado por Andy Warhol. É uma imagem retirada de um recorte de um still do filme Flesh (1968), produção do artista dirigida por Paul Morrissey (sem parentesco com o cantor), que trazia o muso Joe Dallesandro (olha ele aí de novo) como um recém-casado que vira michê para pagar o aborto da namorada da sua mulher. Pode reler a frase, mas é isso mesmo que você entendeu. O torso nu da foto é do próprio Dallesandro.
As capas do The Smiths que viriam posteriormente também trabalhariam nesse esquema de reapropriação. Artistas clássicos, recortes de fotos pré-existentes (às vezes com um olhar homoerótico). Candy Darling, outra musa de Warhol, apareceria na capa do single de Sheila Take a Bow (1987) retirada de um still de outro filme, Women in Revolt (1971).

Hey, Candy!

Hey, Candy!

#8: This is John Wallowitch (1964) - John Wallowitch

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São 56 fotos daquelas cabines fotográficas de 3x4 que formam a capa desse álbum que é considerado um dos mais raros entre os que possuem design de Andy Warhol. Esse tema da repetição é bem típica do trabalho de Warhol. Acho chique a gravatinha fina, o recorte bem na altura da boca escondendo o rosto transformando o músico em anônimo… Mas, confesso, nunca ouvi John Wallowitch.

#9: Made in Spain (1983) - Miguel Bosé

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Acima você vê a capa do CD aberta mas a do vinil também segue o mesmo esquema - retratos de Bosé postos lado a lado naquele traço característico de Andy Warhol misturando foto e traços à mão. Mas então porque gosto mais desse que o da Diana Ross ou o da Aretha Franklin, que também já lançaram capas com desenhos de Warhol? Porque gosto da combinação de cores com fundo branco, esse fluo bem oitentista, e da ideia da repetição em si, de vários intérpretes em um no caso de um músico.
Bosé pensou em convidar Warhol porque esse álbum tomaria uma direção mais pop em sua carreira. Aí chamou o papa da pop art, mas sem muita expectativa. Para sua surpresa, ele aceitou o job de primeira.

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Warhol tirando fotos de Bosé no processo de criação da capa

Ele também dirigiu o clipe de Fuego, single do álbum. Confira abaixo!

#10: French Kissin (1986) - Debbie Harry

Frente e verso. Em 1986, Debbie já conhecia Andy Warhol. O Blondie já tinha estourado, ela já tinha sido fotografada nas famosas polaróides do artista. Era NY na virada dos anos 1970 para 1980, então todo mundo dessa turma se conhecia. E aí Debbie estava lançando seu segundo álbum solo, Rockbird. A capa é bem parecida com essa aí de cima e foi criada por Stephen Sprouse, outro artista da cena novaiorquina da época (aquele que depois fez parceria com a Louis Vuitton nas bolsas com essa mesma letra de cara grafitada, lembra?). O fundo é uma pintura de Warhol (um camuflado) e a foto é da dupla que assina Guzman (Connie Hansen e Russell Peacock). No verso do álbum, essa mesma ideia da capa invertida com o escrito ao contrário, espelhado. Escolhi o single French Kissin porque acho mais warholiano esse P&B, mas… essa também não é exatamente uma capa de Andy Warhol. Tem muito dele, é inegável. Agora, a melhor versão seria uma que foi descartada…

Aí sim, hein? Clique da mesma sessão de fotos da dupla Guzman

Aí sim, hein? Clique da mesma sessão de fotos da dupla Guzman

BÔNUS: Debbie canta numa cama com lençol camuflado by Warhol (finaaaa) no clipe de French Kissin. Amei. Mas odeio camuflado. Afffff.

Um disco incrível está ganhando uma reedição em vinil

Já falei aqui o quanto adoro a Tracey Thorn e também já enumerei Amplified Heart, um dos álbum do Everything But The Girl (dupla de Tracey com o marido Ben Watts), como um dos discos que marcaram minha vida.
Mas o álbum que veio na sequência de Amplified Heart, o Walking Wounded de 1996, também foi muito importante para mim.

Para quem não sabe, a foto da capa e essa são do brasileiro Marcelo Krasilcic. Marcelo fez fama no exterior como fotógrafo e trabalhou para diversas publicações internacionais. Confira outros trabalhos no site dele

Para quem não sabe, a foto da capa e essa são do brasileiro Marcelo Krasilcic. Marcelo fez fama no exterior como fotógrafo e trabalhou para diversas publicações internacionais. Confira outros trabalhos no site dele

Para mais contexto sobre a minha relação com o disco: Amplified Heart saiu em 1994, e era ele que trazia o super hit Missing. Mas Missing só ganhou remix de Todd Terry, que ganhou as pistas, em 1995. Naquela época sem as facilidades da internet, Missing chegou ainda mais tarde por aqui. Em 1996, do alto de meus quinze aninhos, fui para Atlanta visitar minha irmã Ana Flávia Wakabara, que estava morando lá por um ano para aprimorar o inglês. Eram as Olimpíadas, a minha primeira viagem para o exterior, a primeira viagem sozinho (só encontrei minha irmã lá).

A minha irmã já tinha o CD do Amplified Heart. Foi uma das trilhas sonoras dessa viagem, ao lado do The Stonewall Celebration Concert do Renato Russo. Não lembro exatamente quando que achei e comprei Walking Wounded, mas na minha fantasia foi um pouco antes das férias do meio do ano seguinte, 1997, quando fui fazer intercâmbio de um mês em Londres.
Foi meio que nessa hora que a música eletrônica virou outra coisa para mim. O poperô das 7 Melhores da Jovem Pan e a drag music que eu ouvia com RG falsificado nas boates GLS (na época a sigla era essa) agora iriam conviver com drum 'n’ bass, Prodigy, Chemical Brothers - o cool britannia não era só britpop mas também todo esse som da pista. Ainda em Londres, entrei no mítico clube Ministry of Sound sem poder (tinha 16 anos!!) com uma carteirinha de albergue de uma carioca chamada Daniela.
A minha vida agora ia ter roupas de nylon da Slam, colarzinho de bolinhas de metal e a coleção da Triton que era bem streetwear, com blusas que eu adorava (uma tipo jaco da Adidas azul clarinha com detalhes em preto e laranja e um suéter cinza mescla com faixas também em laranja). Eu ia pintar a franja do meu cabelo comprido de azul. E ia ler Noite Ilustrada da Erika Palomino toda sexta - só não ia no Hell's porque era meio cagão.

Era uma época de descobertas.

Nesse meio tempo, o Everything but the Girl, também conhecido como EBTG, já tinha sido muita coisa. Começou jazzy com namoricos com bossa nova, virou meio new romantic em seu segundo álbum, no terceiro gravou com uma orquestra no estúdio famoso da Abbey Road com resultado meio primo de Burt Bacharach e Phil Spector, nos seguintes assumiu uma versão meio Alpha FM de si mesmo, tipo o que as pessoas chamavam de “pop adulto contemporâneo” porque não conseguiam achar outro termo para aquilo! Depois de Walking Wounded virei fã de vez do EBTG de vez e busquei as coisas mais antigas, gosto muito de algumas.

Enquanto gravava Amplified Heart, Tracey e Ben "cometeram” duas músicas para os reis do trip hop Massive Attack: Protection e Better Things. Isso, ao lado do remix de Missing, virariam pontos de transição para Walking Wounded. Protection é uma das músicas mais lindas que tem para você ouvir na sua vida, e apesar de ter sido composta na época do medo da Aids e poder ser lida dessa forma, dizem que Tracey a escreveu pensando em Ben, que em 1992 foi diagnosticado com uma rara doença autoimune chamada síndrome de Churg-Strauss e passou por uma cirurgia que removeu cerca de 80% do seu intestino, fazendo-o passar por um longo período de convalescença. Confira:

E aí chegamos em Walking Wounded em si, com sua capa icônica e músicas não tão icônicas mas que formam um conjunto poderoso, um retrato e uma estética de uma época; e que agora está sendo relançado em formato vinil em novembro.

Logo na primeira música, Before Today, tudo fica claro: com batidas e melodia nitidamente eletrônicas, Tracey canta que não quer isso, não quer aquilo, não quer aquilo outro. O que ela quer? O amor do interlocutor. O resultado não é necessariamente dançante, também não é música de lounge para ouvir ao fundo sem prestar atenção. No fim, ela diz que achava que seu coração era mais duro… até hoje. Ou seja, uma das coisas que correm por todo o disco é o tema romântico - desmistificação da ideia de música eletrônica como desprovida de sentimento, incapaz de passar emoções.
Em seguida vem o primeiro single, Wrong.

Um jogo de estica e puxa; quem tudo quer nada tem. A letra conta de um casal que precisa alinhar expectativas, a voz de Tracey diz que vai seguir o interlocutor para onde ele quiser porque ela estava errada. É a música desse álbum que tentou ser a nova Missing, mais uma vez com remix de Todd Terry, e até fez sucesso mas nada comparado ao hit mundial anterior.

Watts, depois do diagnóstico e da cirurgia que citei, ficou mergulhado em computadores e sintetizadores no seu período mais recolhido. E no processo de composição do Walking Wounded, já recuperado, mergulhou na cena dos clubes de eletrônica levando Tracey junto. Para essas músicas, especificamente, usou um sampler Akai, um sintetizador, um computador, um violão, um microfone e uma mesa de oito canais.
Esse post do Pitchfork fala bastante sobre todo esse processo do Walking Wounded. É interessante como a autora Ruth Saxelby o lê como um disco bem pessoal, com todas as questões do casal naquele momento vindo à tona.

Uma outra das minhas preferidas desse disco é Mirrorball, o que na verdade é um pouco incongruente porque é uma das que mais se aproxima da fase mais acústica do EBTG apesar da produção bem eletrônica:

Não sei porque gosto tanto, acho que é mais a melodia. A música parece bem autobiográfica sobre Tracey, com ela relembrando seus tempos de adolescente e tentando ser mais condescendente consigo mesma, tipo "águas passadas não movem moinhos". É fofa.

Outra que gosto muito é Single - é sobre, pelo que entendo, aqueles períodos em que o casal precisa ficar separado. Viagem de trabalho, coisas assim.

And how am I without you?
Am I more myself or less myself?
I feel younger, louder
Like I don’t always connect
Like I don’t ever connect
— Tracey Thorn em Single

Ouça o disco inteiro:

Um lugar utópico pelos garotos do pet shop e anos e anos

Saiu o primeiro single do novo álbum do Pet Shop Boys. A dupla também prepara para 2020 uma turnê de greatest hits (que tudo!) no Reino Unido (affff). Nesse single, chama a atenção o feat, com Years & Years (a banda, não a série, mas de certa forma existe ligação, daqui a pouco digo) e o tema.

No dueto de Dreamland com a voz inconfundível de Neil Tenant e o vocalista do Years & Years Olly Alexander, eles falam sobre uma utopia: um lugar onde todo mundo é bem vindo, onde se pode ir e vir. Uma clara referência a como as minorias e, principalmente, refugiados vem sendo tratados. Portanto é daí que existe ligação à série de TV Years and Years, na temática que reflete sobre a situação política atual.

They say it’s a free land / and they welcome everyone to stay
— Olly Alexander em Dreamland

Mas o legal é que não deixa de ser uma música pop dançante, que você pode curtir de forma hedonista sem pensar tanto na letra.
Fora que a junção de Pet Shop Boys e Years & Years é um bálsamo para as gay, né? Danço sem nem ouvir a música, só de pensar! Para quem não sabe, tanto Tenant quanto Alexander são abertamente gays, e fazem músicas para todos - mas como gays têm bom gosto, a gente ama mais. Risos.
(é uma brincadeira, tá? hoje em dia é bom avisar)

Conan Osíris é o novo António Variações?

Bom… olha aí embaixo e faz um certo sentido.

Conan Osíris na verdade é Tiago Miranda e se batizou assim em uma homenagem ao protagonista de Mirai Shônen Conan, série de TV do Hayao Miyazaki de antes da fundação do Studio Ghibli, que foi lançada em 1978 e chegou em 1980 em Portugal (9 anos antes de Tiago nascer); mais Osíris, o deus egípcio.
Conan é bem próximo da cena fashion portuguesa: fez a trilha de vários desfiles do ModaLisboa, a princípio em inglês. Elas foram compiladas no EP Silk, de 2014, que é um marco em sua carreira porque contém Amália, sua primeira música em português:

Provavelmente foi a partir daí que começou a relação concreta com o fado - o nome da música já remete à rainha do fado Amália Rodrigues, e a melodia e a letra trazem a melancolia do gênero com novas batidas. Adivinha quem fazia isso antes? António Variações.

Caso você não saiba, Variações é uma antiga obsessão minha sobre a qual já falei por aqui, artista português que morreu precocemente:
1. Recentemente foi lançada uma cinebiografia sobre ele em Portugal que quero muito ver
2. Depois da morte de Variações, já nos anos 2000, uma banda foi formada para gravar canções inéditas que ele tinha deixado

Esteticamente, como já demonstrei acima, Conan também se aproxima de uma visão mais arrojada de imagem de artista. E como ele é da "turma da moda", fica mais fácil.

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Depois do EP Silk, Conan lançou Música, Normal em 2016, mas foi em 2017, com Adoro Bolos, que ele começou a expandir seu público. A música-tema é bem, er, doida:

É aí que eu acho que Conan começa a se separar de maneira bem pontual da poética de Variações: a música é irônica e hedonista, apontando o fato do interlocutor adorar bolos (é isso mesmo) como um baita dum problema. Do meio para o fim ele ainda tem tempo de defender a turma LGBTQ+:
"Pai com pai
Pai com mãe
Mãe com mãe
Que é que interessa
O que interessa é dar amor
Banhinho e não comer à pressa

Nas feridas um beijinho, água fria, uma compressa
Ensinar que o mundo não cessa
Só porque a Tessa abraça a Vanessa"

Para o ouvido brasileiro, a sensação de estar ouvindo algo muito novo se amplifica primeiro porque o sotaque e as construções de frase são bem diferentes, e depois a gente sempre fica se perguntando se devemos levar o que ele diz pelo sentido literal ou ele está usando uma gíria, uma expressão tipicamente portuguesa, uma piada interna que só pode ser entendida com contexto?
Confesso que adoro essa sensação kkkkkkkkkk

Outra música do mesmo álbum é Celulitite, que vem a ser “a mania de achar que tem celulite". Risos! Ela ganhou um clipe não-oficial que já conta com mais de um milhão de visualizações no YouTube:

Acontece que Conan largou seu emprego em um sex shop (é sério, ele trabalhava em um sex shop) e decidiu se inscrever nesse ano no Festival da Canção que rola anualmente em Portugal, uma pré-disputa à vaga portuguesa do Eurovision. Usou a música Telemóveis (que é como os portugueses chamam o celular) e… ganhou.

Telemóveis também carrega toques surreais - cada um pode ter a sua leitura. Para mim ele está com saudades de alguém que já morreu e queria muito poder falar com essa pessoa novamente, mesmo que com um celular. E fica tão frustrado que… quebra o seu telefoninho, vixe.

Eu partia telemóveis
Mas eu nunca mais parto o meu
Eu sei que a saudade tá morta
Quem mandou a flecha fui eu

Conan ficou em 15º no Eurovision de 2019, o que acho um pouco injusto mas também nunca entendi direito o Eurovision e no fundo sempre achei meio cafona. Não que eu não goste de coisa cafona - mas acho que seria esquisito Telemóveis ganhar, mesmo… Rsrsrsrs! Quem ganhou o primeiro lugar foi Replay, uma música de Chipre (!!) da artista Tamta. Ouça:

Ou não ouça - porque é uma BOBAGEM.

Por fim, se você googlar Conan Osíris António Variações, vai ver diversos resultados tentando responder a pergunta do título desse post. O melhor é um em vídeo, onde quem responde é… o próprio Conan:

FAIXA BÔNUS: Conan já citou essa música como “uma das obras mais necessárias". Com vocês, Sr. Extraterrestre de Carlos Paião por Amália Rodrigues: