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(Eu acho que é isso): Lolita Renaux, Alice Pink Pank, Julio Barroso, May East e Luiza Maria, as absurdettes originais com “o” cara no meio

(Eu acho que é isso): Lolita Renaux, Alice Pink Pank, Julio Barroso, May East e Luiza Maria, as absurdettes originais com “o” cara no meio

Quem são essas tais absurdettes?

November 13, 2020 by Jorge Wakabara in música, livro, TV

Essa história tem várias versões. As que sei vieram de:
. O livro Essa Tal de Gang 90 & Absurdettes, de Jorn Konijn
. O livro Dias de Luta: O rock e o Brasil dos anos 80, de Ricardo Alexandre
. O documentário Julio Barroso: Marginal Conservador que passou no canal BIS
. Vídeos do canal de YouTube Vitrola Verde de Cesar Gavin
. O livro 50 Anos a Mil, autobiografia do Lobão
. O livro BRock: o rock brasileiro dos anos 80, de Arthur Dapieve (esse eu considerei bem naquelas, uma vez que ele comete pelo menos duas gafes: coloca Taciana Barros e Alice Pink Pank na mesma formação, coisa que nunca aconteceu; e identifica Taciana como Alice na legenda de uma foto da Gang 90)

A Gang 90 apareceu um pouco antes da Blitz, foi lançada em disco um pouco depois, mas não conseguiu virar a potência que a Blitz virou porque tinha na sua essência uma natureza caótica, personificada por Júlio Barroso. As pessoas dizem que o Júlio possuía esse tipo de loucura que só os geniais têm. Acontece que as absurdettes (figuras-chave nesse grupo maleável no qual mudavam-se os músicos e mantinha-se, naquelas, uma comissão de frente com Júlio e elas) também eram caóticas, loucas e geniais.
Como Júlio se inspirou, entre outras referências, em Kid Creole and the Coconuts pra criar a sua própria banda, ele queria um nome que tivesse esse &. E gostava das Coconuts em si: curtia mulheres bonitas e achava que elas davam uma energia ainda mais anárquica no palco.

Assim como Kid Creole & the Coconuts, a Gang 90 tinha essa coisa artsy, bagunçada, um coletivo no qual qualquer um podia chegar… Uma gangue. Uma gangue onde cabiam 90 integrantes, ou mais. Uma gangue que olhava pro futuro, pra década seguinte, os anos 1990. E finalmente uma gangue que adorava a figura do velho guerreiro, o Chacrinha, e as suas chacretes. Absurdo?
Absurdettes, portanto.

Recorte da revista Manchete de 1983

Recorte da revista Manchete de 1983

Então vamos começar pela que ficou menos tempo na banda… Luiza Maria.

Luiza Maria, a que não mudou de nome

Diz a lenda, ou melhor, o livro de Jorn Konijin, que Júlio Barreto conheceu Luiza Maria como secretária de Nelson Motta. Luiza era a namorada de Guilherme Arantes (já separado da primeira mulher, Márcia) e eles tiveram um filho mais ou menos nessa época, o Gabriel. Depois eles ainda teriam mais dois, Pedro e Tiago.

Guilherme é o parceiro de Barroso na composição Perdidos na Selva, a primeira original a ser gravada pela Gang 90.
Sabendo dessa informação, a gente ouve Perdidos na Selva e fica chocado em perceber como a música é a cara do pop de Arantes, principalmente no refrão, né? Ou será que foi o pop de Arantes que virou isso a partir de Perdidos na Selva?

Nesse vídeo dá pra ver Luiza Maria no canto esquerdo, a quarta absurdette.
Na gravação de Perdidos, a Gang 90 ainda estava tão, er, perdida no quesito musicalidade que Arantes deu uma enorme mão pra deixar tudo minimalmente gravável. Inclusive ele canta junto com Barroso no refrão.
E por que o artista não foi creditado oficialmente como um dos compositores? Porque a música ia concorrer no Festival MPB Shell de 1981. E Planeta Água, de Arantes, também! O regulamento do festival só permitia a inscrição de uma música por compositor, então Arantes abriu mão de assinar Perdidos na Selva. Resultado: Planeta Água em segundo lugar (a ganhadora foi Purpurina com Lucinha Lins, vaiadíssima, um horror). Perdidos ficou pelo caminho, não chegou entre as primeiras posições.

E Luiza no grupo? É o famoso “tava ali dando sopa". Como Barreto amava arrebatar todo mundo para o palco para fazer aquela zona, deve ter sido levada pelo turbilhão. Mas também foi uma das primeiras a sair: antes mesmo da gravação do primeiro álbum, ela já estava fora (de acordo com o livro de Konijn).

Com a morte trágica e misteriosa de Júlio em 1984 (ele caiu ou se matou?) e o consequente baixo astral que eles acabaram conectando com São Paulo, Arantes e Luiza mudaram para o Rio. O casal se separou na primeira metade dos anos 1990.

Por onde anda Luiza Maria? Alguém sabe? Ela fez alguma coisa depois da Gang tipo canto ou composição? Pelo que entendi, nem chegou a ser entrevistada para o livro do Konijn.

Existe uma homônima, maravilhosa, a Luiza Maria que gravou Eu Queria ser um Anjo em 1975 e Tarântula em 1993. A voz certamente não corresponde à ex de Arantes, as histórias também não. Se for a mesma pessoa, por favor me avisem pra eu ficar chocadíssimo.

Lonita (ou Lolita) Renaux, a irmã

Ela era a irmã de Barroso, muito próxima dele. A mais fiel escudeira. Denise Barroso estava lá desde sempre.

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O primeiro compacto da Gang 90, o com Perdidos na Selva, tinha outra música do lado B. Lilik Lamê, a versão de Christine do Siouxsie and the Banshees por Júlio, Antonio Carlos Miguel e Katy, é cantada por Lonita Renaux. A música acabou não entrando no primeiro álbum.

Depois do irmão morrer, em 1984, Denise chegou a compor música. Ela é co-autora de duas faixas do álbum Declare Guerra do Barão Vermelho lançado em 1986, o primeiro sem o Cazuza na formação da banda. As músicas são Não Quero Seu Perdão com co-autoria de Júlio e Roberto Frejat e Maioridade com Frejat, Cazuza e Guto Goffi.

Imagino que ela tenha continuado fazendo parte dessa turma Baixo Gávea mesmo depois da partida de Júlio. Trabalhava para o onipresente Nelson Motta no Noites Cariocas, o projeto que rolava no Morro da Urca.

Em 1991, ainda como grande bastiã da memória do irmão, Denise organizou o livro A Vida Sexual do Selvagem, com textos, manuscritos, fotos e desenhos dele mais depoimentos de amigos. Está obviamente esgotado e os que você encontra por aí de segunda mão custam aquela nota.

Se você encontrar um por um preço OK, compre: é praticamente um investimento!

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Denise também já morreu em 1993, oficialmente de insuficiência renal. Em 2019, a irmã caçula deles, Andrea Barroso, falou abertamente ao jornal O Globo que Denise foi vítima da Aids. Quem soube, depois dela fazer exame, foi ela e o outro irmão, David, que é infectologista. Mas na época preferiram não divulgar essa causa mortis.

Denise tinha um marido, o jornalista Okky de Souza. Okky trabalhou nas revistas nacionais Pop e SomTrês. Segue como fonte de matérias sobre Júlio e a Gang 90, já que acompanhou tudo muito de perto. Não entendi se Okky foi com Denise para o Rio depois que Júlio morreu, porque ele sempre foi muito ligado à cidade (inclusive é coautor do livro São Paulo 450 Anos Luz: A Redescoberta de uma Cidade com Gilberto Dimenstein). Mas que eu saiba eles não se separaram, então não sei.

Menina morango, banana split lady, menina sorvete <3 Viva Denise!

May East, a loira

Maria Elisa Caparelli Neto era a videoartista do coletivo TVDO que namorava Nelson Motta e acabou entrando na Gang 90. A origem desse seu codinome May East tem versões: no livro de Konijn, fala-se da referência mais óbvia, May West, a atriz de Hollywood que era bem modernex nos anos 1930. Mas a própria May puxa para o fato de que ela ficava no East Side em NY aqui nesse vídeo do Vitrola Verde. Júlio ficava no West Side e achava muito cool ela morar no East Side, e a chamava de May East Side no começo, segundo ela mesma. Com o tempo, abreviou-se: apenas May East.

A ideia de cantar Lili Marleen no começo dos shows da Gang era na verdade de May, apesar das pessoas ligarem isso à Alice – as duas dividiam o número.

A versão aqui, com Marlene Dietrich, é em inglês – mas May diz que elas cantavam em alemão.

May decidiu sair da banda depois de uma viagem antológica que eles fizeram pelo nordeste do Brasil com shows, mais especificamente em Alagoas. Essa viagem ficou antológica porque, entre outras coisas, eles entalaram a kombi que levava banda e equipamentos no mar. Há controvérsias do que aconteceu a partir daí: May lembra deles fugirem porque a empresa de aluguel de veículos queria a kombi (ou o dinheiro). Outros dizem que conseguiram tirar a kombi de lá e devolvê-la. De qualquer forma, May saiu da Gang nessa bateria de shows pós-primeiro álbum, ainda antes da morte de Júlio.

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Uma curiosidade: May mudou o nome oficialmente para May East na sua identidade! Doido, né?

E em 1985 ela lançou seu primeiro disco solo, Remota Batucada.

Ela, que adorava esse lado antropofágico pós-tropicalista da Gang 90 (dá para perceber nas entrevistas), mergulhou ainda mais nesse Brasil profundo, buscando uma new wave ainda mais nativa. A música de trabalho do Remota Batucada chama-se Índio e foi composta por ela com Fernando Deluqui. No lançamento do álbum, acredito que ele e o tecladista Luis Schiavon, que também participou da gravação, já estavam bem envolvidos com o RPM.
(A última música do disco, Fire in the Jungle, também é parceria de May com Deluqui; fez parte da trilha do filme Areias Escaldantes de 1985, considerado o registro cinematográfico da cena BRock da época)
Aliás, Remota Batucada é praticamente um quem é quem de parte da new wave brasileira: tem Kodiak Bachine, da maravilhosa Agentss, na faixa Ideias de Brincar (composição dele); participação de Ted Gaz e Kid Vinil, da Magazine, na faixa Normal (composição de May); participação da Alice Pink Pank (a gente já fala disso nesse mesmo post, mais para frente). A divertidinha Night Club em Beirute é composição de Léo Jaime e Tavinho Paes (um dos poetas-letristas que circulavam nessa turma, Tavinho fez um monte de hit tipo Rádio Blá com Lobão e Arnaldo Brandão, Gata Todo Dia com o mesmo Léo e Marina Lima, e Sândalo de Dândi com Alec Haiat e Yann Laouenan, ambos do Metrô). Caim e Abel tem entre seus compositores Guilherme Isnard, do Zero (desconfio que a voz masculina na música também é dele) mais Alberto Birger, Nelson Coelho, Fabio Golfetti e Cláudio Souza (todos também do Zero e os dois últimos depois fizeram parte do Violetas de Outono).

E ainda tem Bumba Meu Boy, uma co-autoria de May com Nico Rezende – nada menos que o cara que fez Perigo, o megahit da Zizi Possi (entre várias outras canções). Bumba Meu Boy é uma tentativa de choro eletrônico, não curto muito não…

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May seguiu gravando mais álbuns. Mas o próximo, Tabapora, de 1987 (ou 1988? Varia de acordo com a fonte), já começa a namorar um som mais new age, mais world music. O de 1990, Charites, tem os dois pés nessa onda. Hoje May é diretora executiva da Gaia Education, uma ONG voltada para educação com foco em design ecossustentável.

Alice Pink Pank, a holandesa

Mito vivo do BRock. Reza a lenda que recentemente Alice Vermeulen estava muito tranquila na Holanda, de vez em quando recebendo ligações do Lobão e um dinheirinho de royalties. Aí o Konijn a localizou e assim conseguiu fazer o livro sobre a Gang. É uma das histórias mais doidas do rock nacional, mas ela nem tinha muita noção do legado que havia deixado aqui. E mesmo na época, a família dela e o pessoal da sua cidade, Tilburgo, não conseguiam entender que ela fazia parte de uma banda que dava shows gigantes, depois fez parte de outra banda que também era grande, participou de programas de auditório e até posou para a Playboy!

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Alice já tinha gravado com o U2 antes de chegar ao Brasil. Pois é, bizarro, e ela fala sobre o assunto como quem vai para a padaria. Mas enfim: o U2 ainda não era uma das maiores bandas do mundo. Na verdade, não era nada: a participação foi no primeiro álbum deles, lançado em 1980, o Boy, na última faixa, Shadows and Tall Trees. Ela faz o backing vocal, dá até para ouvir a voz de Alice bem claramente em algumas partes.

Como essa loucura aconteceu? Bom, ela estava viajando pela Europa, foi parar em Dublin e fez amizade com o U2. O empresário, Tim, e ela acabaram tendo um teretetê que não deu em nada. Gravou e pronto.

Depois, Alice encontrou a brasileira Rosana Pires Azanha, que também fazia uma viagem pela Europa na época. Ficaram amicíssimas. Rosana disse que a nova amiga devia visitá-la no Brasil. E Alice fez que fez que… foi.

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Já disseram por aí que o encontro de Alice com Júlio foi em NY ou no exterior, mas segundo a própria foi em São Paulo mesmo, no Paulicéia Desvairada, o clube noturno que tinha essa pegada new wave e contava com Júlio Barroso nas picapes. Ele, recém-chegado de NY, trazia discos de bandas novas, modernas. Rosana, descolada, levou a amiga turista para dançar lá. Da parte dele, ao que tudo indica, foi amor à primeira vista. Ela pediu pra ele tocar Psycho Killer do Talking Heads, ele a chamou para subir na cabine de DJ. Daí para levá-la para cama e chamá-la para uma banda que ainda nem existia (não necessariamente nessa ordem) foi um pulo.

May, Lonita, Alice (com a luva) e Júlio: a comissão de frente mais clássica da Gang 90

May, Lonita, Alice (com a luva) e Júlio: a comissão de frente mais clássica da Gang 90

May fala sempre que, das quatro absurdettes do começo, Alice era quem cantava melhor porque tinha um background (a participação no disco do U2). Acho que era mais talento nato, mesmo porque a experiência anterior dela foi muito pequena (a última faixa do disco de estreia do U2, que podia ter dado em nada).

Alice namorou Júlio por um tempo considerável. A origem do seu nome artístico é Liesel Pink-Pank.

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Liesel Pink-Pank

era uma bailarina alemã dos anos 1930. A própria Alice gostava do nome, gostava de dançar e escolheu a alcunha

Alice chegou a compor duas músicas do primeiro álbum da Gang 90 – na verdade foi a única absurdette a fazê-lo nessa estreia. Eram as menos conhecidas e nem por isso menos incríveis Românticos a Gô-gô e Jack Kerouac, ambas parcerias com Júlio.

Românticos a Gô-gô é tão neotropicalista que nem sei. A letra é um name dropping de nomes incríveis: de Cartola a Jimi Hendrix, de Brigitte Bardot a Pagu, de Yoko Ono a Marcel Duchamp, de Arto Lindsay a Vaslav Nijinsky. Uma delícia.

Já Jack Kerouac é bem spoken word.

Mas essas, na minha modesta opinião, nem são as melhores contribuições de Alice para a nossa música.

Nesse meio tempo, Júlio começou a beber mais e ficar violento com ela, como é narrado no livro de Konijn. E Alice, num show na Urca, conheceu um baterista que Júlio chamou na amizade para substituir Gigante Brazil, que não conseguiu chegar a tempo.
Era o Lobão, na época tocando na banda da Marina Lima e ex-Blitz (lembra que eu disse que a Blitz lançou disco antes da Gang?).
Ambos se apaixonaram. Ficaram.
De uma conversa entre Júlio e Lobão, na qual descobriram que ambos estavam apaixonados pelas mesmas mulheres (Alice e Marina), saiu a composição Noite e Dia.

Lobão também gravou. E Marina também, antes dele, no mesmo ano de 1982! Imagino que, se existe essa divisão na música, Alice seria a musa dos primeiros versos e Marina (por causa dos olhos negros) seria a musa da segunda parte.

Em 1983, saía Será Que o King Kong é Macaca?, composição de Toinho com Tavinho Paes, para o especial infantil de TV Plunct Plact Zum! E dá para ver Alice ali, entre as absurdettes. Não sei quando foi gravado, mas me parece que essa deve ter sido uma das últimas coisas que Alice fez com a banda.

Acabou que Alice saiu da Gang e da casa de Júlio – foi morar com o Lobão e acabou entrando para a banda que ele tinha na época e que atendia por Lobão e os Ronaldos. Júlio, enquanto isso, achou outra absurdette para manter o número de três mulheres no palco (calma que eu já conto essa parte!).
Nesse meio tempo, a holandesa fez uma participação num disco muito especial: a estreia de Léo Jaime.

Phodas "C” saiu em 1983 e Alice é a backing vocal que canta junto com ele em Ora Bolas!, a voz feminina mais destacada. Em teoria, May East também participou desse disco em outra música – no encarte, está creditada para Eu Vou. Mas o detalhe: não existe música chamada Eu Vou nesse álbum. Entendeu? Nem eu.
(May namorou Jaime nessa época)

Bom, então vamos para Ronaldo Foi pra Guerra, o disco do Lobão e os Ronaldos que não só traz Alice nos vocais e teclados mas também como compositora.

Um clássico do BRock direto de 1984, Ronaldo Foi pra Guerra é bem perfeitinho. Quem só conhece os maiores hits devia dar uma revisitada nele, vale a pena. As músicas das quais Alice participou da composição são as ótimas Tô à Toa Tokio (com Lobão), Abalado (idem), a minha preferida Bambina (com Lobão, o baterista dos Ronaldos Baster Barros e o poeta-letrista Bernardo Vilhena) e Inteligenzia (com Vilhena).

Pelo que entendi, a versão de Alice para a saída dela dos Ronaldos é que Lobão arrumou outra mulher (Daniele Daumerie, prima dele que posou nua na capa do primeiro disco solo do Lobão, O Rock Errou, de 1986). A versão dele é que ela entrou numas de se lançar em carreira solo. Enfim!

E lembra que em 1985 a May East lançou seu primeiro disco solo? Falei que tinha participação especial de Alice nele, né? Era na faixa Maraka.

Maraka é meio protoaxé, fala de Oxum numa pegada de toque das religiões de matriz afro. Eu adoro! O mais esquisito: só May aparece no clipe. Cadê Alice? Só a voz…

Bom, talvez Alice estivesse ocupada tentando armar a própria carreira solo.

Amo essa música. DE VERDADE.
E olha a surpresa: os compositores, além da própria Alice, eram Leoni e Liminha.

O compacto contou com Baby Love de lado A e 24 Frames Per Second do lado B. 24 Frames é de Alice com Guto Barros (dos Ronaldos) e… Isabella. Não sei quem é Isabella!

O compacto contou com Baby Love de lado A e 24 Frames Per Second do lado B. 24 Frames é de Alice com Guto Barros (dos Ronaldos) e… Isabella. Não sei quem é Isabella!

Foi Liminha quem produziu o compacto de Alice. Mas quando eu digo que é uma surpresa ver Leoni entre os compositores, é porque o compacto saiu pela mesma gravadora da banda de Leoni na época, Kid Abelha e os Abóboras Selvagens. O Kid lançou, em 1985, o disco repleto de hits Educação Sentimental. E diz a história extraoficial que a gravadora preferiu focar no Kid, que tinha Paula Toller à frente, do que em Alice Pink Pank. Morria aí a carreira solo dela.
(E aí rolaria aquela história bizarra do Leoni brigando com o Léo Jaime no palco e a ex-namorada, Paula, e o Herbert Vianna, então atual namorado dela, se metendo no meio, e aí a filha do fundador da Zoomp… Vish, isso é assunto para outro post, né?)

Alice acabou cansando de esperar que alguém lhe desse mais alguma chance e voltou para a Europa. Mas antes… Sim, ela deixou mais uma música para o pop nacional.

É muito doido quando as histórias se cruzam. Lembra que eu falei da Emilinha aqui? Lembra que ela fez parte do Afrodite se Quiser? Pois é.

Talk Tales, do primeiro álbum delas, é de Alice com uma pá de gente: Paulo Sauer, Luis Casé, Sérgio Santos, Pedro Brandão, Isabela Lago, Flávia C e Claudia Niemeyer (que já foi da Blitz e da Gang 90). Soa como algo da Blitz, aliás.

Alice ainda tentou seguir carreira artística na Holanda mas essa história não rendeu. Virou um capítulo dos mais interessantes da história do BRock, apesar de desconhecida na sua terra natal (e hoje, no Brasil, também quase esquecida).

Taciana Barros, a resistência

Parte da formação da Gang 90 pós-lançamento do primeiro álbum: Júlio Barroso, May East, Taciana Barros, Lonita Renaux e Herman Torres

Parte da formação da Gang 90 pós-lançamento do primeiro álbum: Júlio Barroso, May East, Taciana Barros, Lonita Renaux e Herman Torres

Taciana tocava numa banda de garotas em Santos, litoral de SP, quando Júlio a viu. Não fica claro nas histórias orais que a gente ouve se nessa época Alice já tinha saído ou estava para sair da Gang 90, mas o convite rolou ali no meio de um show, com Taciana no palco e Júlio na plateia, gritando "passa seu telefone".
A gente não sabe se ele ligou 3 horas da manhã com um papo poesia, mas logo Taciana era uma das absurdettes no lugar de Alice. De cabelo curto (como Alice) e roupas moderninhas (idem), ela é tratada como “a substituta" até hoje, por mais que já tenha provado pelo resto da carreira que é muito mais que isso.
Mas algo que pode ter colaborado para essa visão do povo é o fato dela ter participado do clipe de Telefone dublando, mesmo não tendo gravado a música.

(E repare que estranho: Lonita não aparece aqui)

Quando Júlio morreu, em 1984, ele e Taciana estavam num estágio de composição avançado do segundo álbum da Gang. May já tinha saído, Herman Torres pelo que entendi também, Lonita não sei. Taciana decidiu levar a coisa para frente. A Gang 90 continuaria sem o seu nome principal, Júlio Barroso, e cortava o “absurdettes". Agora era uma absurdette que virava líder e o disco Rosas & Tigres saiu em 1985. Entre as composições, tem um monte de música com co-autoria de Júlio (9 das 11). E também um monte da Taciana (8 das 11).

Rosas e Tigres, a primeira faixa, é a música que o povo fala que Júlio estava empolgado a respeito, antes chamada Kamikaze Coração. A voz principal virou da Taciana. De Júlio, Taciana e Roberto Firmino (que fazia parte dessa nova formação), é ótima. Entrou para a trilha sonora da Armação Ilimitada. Mas não "aconteceu" nas paradas, assim como o resto do álbum.

Sexismo? Não sei, porque Paula Toller era a voz do Kid Abelha e tudo bem ela fazer sucesso, né? Será que duas já eram demais?

Curiosidade: em 2015, o disco de Filipe Catto Tomada trouxe uma gravação de Do Fundo do Coração, música de Taciana e Júlio, a última desse álbum Rosas & Tigres. Adoro demais a original, e esse remake é legal também.

Pedra 90, que saiu em 1987, é o terceiro e derradeiro disco da Gang, ainda com Taciana à frente. Dessa vez, só uma música contava com Júlio Barroso na autoria (Junk Favela). E, no lugar de Roberto Firmino, quem assume a composição de várias músicas aqui é Gilvan Gomes (5 das 8).

A curiosidade é que tem dois ícones do BRock escondidos aqui entre os compositores, ambos em parcerias com Taciana. Arnaldo Antunes, na época parte dos Titãs, é co-autor em Vida Dura. E Edgard Scandurra, do Ira!, é co-autor de Coração de Alguém.
Edgard foi casado com Taciana e lá pelo fim dos anos 1980 tiveram um filho, Daniel. No verso do álbum Amigos Invisíveis, o primeiro trabalho solo do Scandurra (saiu em 1989), tem uma foto do Daniel.

amigos-invisiveis-verso-edgard-scandurra.png

A música Bem Vindo Daniel é em homenagem ao bebê. Taciana é co-autora de Abraços e Brigas, Culto de Amor e Vou me Entregar Como Nunca.

Em 1989 apareceu a banda Solano Star – o nome é uma homenagem ao navio Solana Star, que estava traficando latas de maconha em direção de Miami em 1987. Ao descobrirem que o barco estava sendo procurado, a tripulação jogou as latas no mar… e eles estavam perto do litoral do Rio. Resultado: surgia o que ficou conhecido como verão da lata, de 1987-88, com o povo achando latas na praia e arrasando, se é que me entendes.
Faziam parte da Solano Star: Taciana nos vocais e Scandurra na guitarra, mais um povo. Gosto BASTANTE de Uma Vez Mais:

Não sei quando a Solano Star terminou, só tenho essa referência de data desse clipe: 1990.
No repertório da banda também tem Isadora, uma música feita por Taciana baseada em longas conversas entre ela e Andréa de Maio, personagem clássico da noite paulistana. Isadora é sobre travestis.

Também não sei exatamente quando começou o relacionamento de Taciana com Mitar Subotic, o Suba.

Suba, iugoslavo, veio para o Brasil na época do Collor com uma bolsa para estudar bossa nova. Acabou virando um dos responsáveis por divulgar o casamento entre a música brasileira e a eletrônica, trabalhando com gente como Marina Lima e Bebel Gilberto.
Suba e Taciana casaram, e dessa união saíram coisas maravilhosas. Em 1995, foi lançado o Janela dos Sonhos, primeiro e por enquanto único disco solo de Taciana.

Uma coisa interessante é que continuou (e continua) tudo em família: Scandurra participou desse álbum, por exemplo. E a primeira música, Qualquer Gesto, é uma nova versão para Qualquer Gesto do disco Rosas & Tigres, o segundo da Gang 90, composição de Taciana com Júlio Barroso e Roberto Firmino. E é muito boa!!!

O álbum solo do próprio Suba, São Paulo Confessions, saiu em 1999 e trazia a participação de algumas vocalistas – entre elas, Taciana em Você Gosta, composição dele, dela e de Marcelo Rubens Paiva.

É interessante porque essa neo bossa, ou seja, mistura da eletrônica com bossa nova, samba jazz e congêneres, estava pelo mundo (vide meu post sobre Shibuya-kei) nos anos 1990. Com Suba no Brasil, ela chegou no seu ponto mais burilado, mais refinado. O auge.

Suba morreu num incêndio no mesmo ano de lançamento desse disco, 1999. Seguia casado com Taciana mas eles já estavam morando separados.

Imagina que loucura para ela? Júlio, depois Suba.

Em 2008, surgia o projeto que provavelmente foi o mais bem sucedido comercialmente de Taciana. Era o Pequeno Cidadão, de música infantil, ao lado dos comparsas Arnaldo Antunes, Antonio Pinto e mais uma vez Scandurra.
Pequeno Cidadão é MUITO LEGAL. E não precisa ser criança para gostar! Eu juro!

E assim termina – por enquanto – a história das absurdettes.
Todas maravilhosas.
Obrigado para elas. <3

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November 13, 2020 /Jorge Wakabara
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Raised by Wolves é tudo – amém!

October 13, 2020 by Jorge Wakabara in TV

Raised by Wolves não está muito comentada aqui no Brasil principalmente porque não está disponível pros brasileiros – é uma série da HBO Max. Mas sou fã do Ridley Scott e meu marido também, então "corremos atrás” dessa série de ficção científica produzida por ele e com os dois primeiros capítulos dirigidos por ele.

Ao mesmo tempo, é aquela coisa, né: essa história de chegar num novo planeta com perigos, hummm, já vimos Scott fazendo antes. E ele costuma se repetir pra além da conta. Então a gente chegou com um pezinho atrás. Mas existe um segredo em Raised by Wolves: o criador dela não é Scott e sim Aaron Guzikowski.

A Mãe (Amanda Collin), uma androide de aparência andrógina na superfície (me lembra Doris para Maiores!) e suas crianças

A Mãe (Amanda Collin), uma androide de aparência andrógina na superfície (me lembra Doris para Maiores!) e suas crianças

Existem elementos em comum com o trabalho anterior de Scott, claro: andróides, criaturas alienígenas animalescas e violentas, as câmaras de sono, os cenários extraterrestres com uma devastação pós-apocalíptica. Mas tem um elemento principal aí que muda quase tudo e que não esteve presente de forma tão primordial em algo ridley-scottiano antes: a religião organizada e a fé em um mito ancestral.

Fóssil de uma serpente gigante, cena de Raised by Wolves

Fóssil de uma serpente gigante, cena de Raised by Wolves

Na franquia de Alien, uma mitologia mais completa só foi aparecer bem depois, com os mais recentes Prometheus (2012) e Alien: Covenant (2017), que ainda podem (devem?) ser completados com mais um, formando uma trilogia de prólogo. Antes, o alien era uma criatura extraterrestre parasitária e letal e pronto, o inimigo estava ali, o desafio dado era conseguir fugir dessa colônia horrorosa sem que esses bichos conseguissem se espalhar por outros planetas e, principalmente, sem que uma rainha-mãe chegasse na Terra. Outro desafio das tramas eram os militares ou representantes do governo, que viam nos aliens uma oportunidade de uma arma poderosa na guerra e não entendiam que os aliens são incontroláveis. Quem ousava querer um alien pra chamar de seu geralmente acabava tomando do próprio veneno, morto por algum deles.

Achou o neném! Cena de Alien: Covenant (2017)

Achou o neném! Cena de Alien: Covenant (2017)

Já em Raised by Wolves a gente percebe uma clara vontade de criar um universo particular que vai servir para discutir de maneira metafórica as instituições religiosas e o que permeia a fé humana ao mesmo tempo que constrói uma história mítica em si. Tudo começa com dois fatos: uma guerra santa faz uma grande nave, a arca, sair da Terra com colonizadores em direção de um novo mundo, o Kepler-22B. Esses colonizadores são da religião oficial que cultua um deus Sol, os mitraicos (o Mitraísmo curiosamente existiu de verdade na nossa história terrestre, entre os séculos 3 e 4 na Roma antiga). Ao longo da série, também são citados Rômulo e Remo, em referência clara à origem mitológica de Roma com os irmãos fundadores que foram amamentados por uma loba.

Ao mesmo tempo em que essa arca decola, também está saindo uma outra nave, essa com dois andróides, a Mãe e o Pai (Abubakar Salim), e seis embriões humanos. A ideia do homem que coloca esses andróides pra embarcar é que eles colonizem e garantam um futuro pra humanidade sem guerra – esse cara é ateu e programa os andróides para que eles criem essas crianças como ateias, evitando assim conflitos religiosos. O azar: essa nave também está programada para ir pra Kepler-22B.

Outra curiosidade: Kepler-22B também existe na vida real. Ele foi o primeiro descoberto pela Nasa como teoricamente habitável, baseando-se na distância entre ele e a estrela do sistema em que está.

Guerreiros mitraicos na série: Marcus (Travis Fimmel), Sue (Niamh Algar) e Lucius (Matias Varela)

Guerreiros mitraicos na série: Marcus (Travis Fimmel), Sue (Niamh Algar) e Lucius (Matias Varela)

A Mãe vê os mitraicos como inimigos. Um dos grandes plot twists é que ela não é apenas maternal: guarda dentro de si uma outra essência que, aliás, lembra a mulher-robô do clássico Metrópolis. Scott na verdade aponta como referência a estátua que fica no Rockefeller Center de Nova York. E a posição dela, de braços abertos e pernas unidas, obviamente nos lembra da crucificação de Jesus (tem outro momento que ela fica na mesma posição).

Terra prometida, serpentes (aqui elas são gigantes), sacrifícios, fogo como símbolo do divino, milagre, privações e êxodos no deserto, vozes e visões (que podem ser mensagens do divino… ou esquizofrenia?): tudo isso vai pipocando ao longo dessa primeira temporada. Também rola falibilidade de líder religioso, crime em nome do deus deles, intolerância contra qualquer outra crença (ou a falta de crença). Soa bem, hum, contemporâneo. Infelizmente.

Mas um traço que é BEM Ridley Scott na série é o androide e a questão: até que ponto eles não têm sentimentos de empatia e outros traços humanos, como o ciúme, a tristeza perante a rejeição, o instinto materno? Essas características humanas seriam programáveis? E será que não seriam corruptíveis? Não se desenvolveriam e se transformariam em outras coisas, tal qual acontece nos próprios humanos?

Já foi confirmada uma segunda temporada de Raised by Wolves. Mal posso esperar!

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October 13, 2020 /Jorge Wakabara
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SsingSsing, uma banda xamânica, folclórica, glam roqueira!

June 24, 2020 by Jorge Wakabara in música

Essa foi uma dica do Ricardo Antunes!

Mais do que uma banda de drag queens, a sul-coreana SsingSsing se conecta a uma cultura mais ancestral: a dos xamãs da Coreia do Sul. O xamanismo, que veio antes do budismo no país, conta com sacerdotes que precisam se conectar com espíritos masculinos e femininos. Na verdade, a intersexualidade é ligada à espiritualidade e conexão com o divino em várias culturas ao redor do mundo.
No xamanismo coreano os homens são chamados baksu (e as mulheres, mudang; existem outros termos dependendo da região).

Um baksu do xamanismo sul-coreano

Um baksu do xamanismo sul-coreano

Mais do que incluir uma persona feminina na performance, o vocalista Hee-moon Lee já declarou em entrevistas que queria trazer algo mais gender neutral para o palco.
Será que o nome também vem de cross-dressing, fora o óbvio "CantarCantar"?

Já no estilo musical, o SsingSsing se inspirava em minyo, o estilo musical folclórico coreano (que por sua vez tem o mesmo nome do estilo musical folclórico japonês, me levando a crer que existe uma ponte cultural aí). Pelo que entendi, eles pegaram a melodia e o jeito de cantar do minyo e incluíram instrumentos contemporâneos (guitarra, bateria) e referências de glam rock, ska, disco music. Lembra o processo (que teve resultados bem diferentes) do enka japonês, que saiu do folclórico da escala pentatônica mas usa instrumentação de orquestra clássica e instrumentos “ocidentais".

E por que estou falando no passado ao me referir à banda? Infelizmente o SsingSsing acabou em 2018.

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June 24, 2020 /Jorge Wakabara
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Ruas vazias na ficção – e uma peça de teatro via Zoom

June 22, 2020 by Jorge Wakabara in TV, livro, teatro

Uma coisa que sempre me fascinou são narrativas sobre cidades fantasma. Ou porque o tempo passou demais e ela foi abandonada. Ou porque a maior parte das pessoas desapareceu ou morreu devido a doença ou arrebatamento. Não importa: acho a imagem da cidade vazia impactante. Ruínas contemporâneas.

Tem um programa no History, acho, que não me lembro o nome mas que mostra o que aconteceria se a humanidade desaparecesse da face da Terra. Toda vez que reprisam eu tô lá, assistindo hipnotizado. Arranhas céus desabando depois de séculos de corrosão. Reatores nucleares explodindo por falta de resfriamento e espalhando radiação.

Acho que esse é um dos motivos pelos quais me atraía a ideia de ir para Chernobil (e consequentemente Pripyat, que é a cidade fantasma perto de Chernobil, abandonada após o acidente).

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Em #Pripyat tudo está desmoronando - esses são locais que crianças frequentavam. Crianças e adolescentes que ficaram expostos à radiação por muito mais tempo que o necessário porque o governo socialista demorou pra espalhar a notícia da explosão do reator pra não criar pânico. #chernobyl #chernobil #mckievinho

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Para quem ainda não sabe: sim, eu fui para Chernobil. Conto mais nesse post aqui.

Um dos livros da minha infância (já que estamos nessa fase, eu falei aqui sobre O Gênio do Crime, né?) é Blecaute de Marcelo Rubens Paiva.

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Nossa, é muito bom! Como eu queria esquecê-lo para ler de novo!
Aliás, vontade de reler todos os livros do Marcelo Rubens Paiva. São ótimos.

Blecaute fala sobre três jovens amigos que viajam para cavernas do Vale do Ribeira e, por causa de uma tempestade, ficam presos por lá uns dias. Quando saem e voltam para São Paulo, surpresa: eles são os únicos sobreviventes. Algo aconteceu e ninguém mais está vivo.
Esse é um dos livros mais adorados do Marcelo Rubens Paiva. Amo esse post, no qual um cara analisa as capas das edições de Blecaute. A minha preferida, assim como a dele, é a da Brasiliense.
(E por que ainda não existe nenhuma adaptação de Blecaute para o cinema ou para série de TV? Não sei. Tão marcando, para variar. E dessa vez não tem mesmo, pesquisei antes de dizer. Kkkkkkkk!)

Muitas outras ficções trazem ruas desertas. De cara me lembro de Noite Adentro, série recente da Netflix que me marcou demais – tanto que já falei dela algumas vezes. Tem também:

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A Dança da Morte

Livro do Stephen King que já foi adaptado para a TV em uma minissérie de quatro capítulos, em 1994 – falei sobre isso na minha última newsletter (por que você ainda não assina a minha newsletter?).

O livro mostra os acontecimentos após uma mutação do vírus influenza desenvolvida como arma biológica, bem letal, vazar de uma instalação militar norte-americana e atingir todo o país (provavelmente o mundo, mas a gente não fica sabendo). Existem poucos sobreviventes, e eles começam a se reunir. A ideia de King era fazer um épico do tipo Senhor dos Anéis com tintas contemporâneas e também refletir sobre os valores da civilização norte-americana. É considerado uma das melhores criações de King.

Stu Redman (Gary Sinise), Frannie Goldsmith (Molly Ringwald) e Harold Lauder (Corin Nemec)

Stu Redman (Gary Sinise), Frannie Goldsmith (Molly Ringwald) e Harold Lauder (Corin Nemec)

Uma coisa que acho muito curiosa dessa adaptação é que ela traz integrantes do Brat Pack pós-anos 1980. Rob Lowe é o surdo-mudo Nick Andros, já pós-escândalo da sex tape com uma garota menor de idade. E Molly Ringwald é Frannie Goldsmith. Adam Storke, galãzinho pós-Brat Pack, é o músico Larry Underwood (ele é o Charlie em Três Mulheres, Três Amores ou, em inglês, Mystic Pizza, o filme de 1988 que marcou o começo da carreira de Julia Roberts). E ainda tem Corin Nemec como Harold Lauder – ele era Parker Lewis na série Parker Lewis Can't Lose, que é basicamente uma adaptação para a TV de Curtindo a Vida Adoidado sem pagar direitos autorais.

A belíssima surpresa é que Dança da Morte (em inglês The Stand) vai ganhar uma nova adaptação em série de TV logo menos. Ela já está gravada mas parece que eles estão segurando a estreia em respeito às vítimas de COVID-19, já que comparações serão inevitáveis. Mas é isso: comparações serão inevitáveis quando estrear. King está bem envolvido – tanto que desenvolveu um novo final para a história. E a produção, da CBS, conta com um grande elenco que inclui James Marsden (Westworld, X-Men) como Stu Redman, Amber Heard (Aquaman, Zombieland) como Nadine Cross, Whoopi Goldberg (ai, me poupe, não precisa de refs) como Mãe Abigail e Alexander Skarsgard (True Blood, A Lenda do Tarzan) como Randall Flagg.

Dança da Morte versão 2.0: Larry Underwood (Jovan Adepo) e Rita Blakemoor (Heather Graham)

Dança da Morte versão 2.0: Larry Underwood (Jovan Adepo) e Rita Blakemoor (Heather Graham)

The Leftovers

Ave, como eu amo. A série de Damon Lindelof (Lost, Watchmen) é ma-ra-vi-lho-sa. Ela é baseada num livro de Tom Perrotta e parte da premissa que 2% de toda a população desapareceu – DO NADA! Foi um arrebatamento bíblico perto do fim do mundo? Foi uma transferência para uma realidade paralela? Existem teorias (it's complicated), porém o foco é na reação de quem ficou, muito mais do que em quem sumiu. Religião e fé, a fronteira entre sanidade e loucura, confiança e traição. Tudo isso permeia as três temporadas e de perto ninguém é normal. E como nada é coincidência (ou melhor, você decide o que é coincidência e o que não é): Lindelof ficou sabendo sobre o livro de Perrotta numa resenha para o New York Times assinada por… Stephen King.

Nora Durst (Carrie Coon) e Kevin Garvey (Justin Theroux) em The Leftovers

Nora Durst (Carrie Coon) e Kevin Garvey (Justin Theroux) em The Leftovers

Agora você já está pensando que o título desse post foi um clickbait, né? Não. Chegou a hora de falar de…

A Arte de Encarar o Medo

Para começo de conversa, já digo logo: trabalhei com teatro mas morro de preconceito. E não é algo sem fundamento: tem muita peça ruim por aí. É caro, é difícil. Outras formas de arte, como o cinema, são mais práticas. Você consegue ver o trailer. Você tem a referência dos atores. Tem horários mais diversos. Você vai até um complexo de salas e escolhe qual te dá vontade de ver na hora. A impressão é a de que a garantia de aproveitamento é maior.

Isso posto, às vezes, bem de vez em quando, consigo contornar o histrionismo de alguns atores, a fragilidade de muitos textos e certas montagens de gosto duvidoso e… até gosto de teatro.

Mas A Arte de Encarar o Medo me interessou por outra coisa: a iniciativa d’Os Satyros é experimental, uma alternativa para o teatro nos "novos tempos”. Existem coisas que não temos nela: a presença corpórea dos atores, por exemplo. A energia de uma sala com plateia e atores ali na sua frente, te mostrando uma história. Só que a montagem ganha outros elementos quando realizada na plataforma Zoom. E mais importante: ela foi concebida para uma plataforma como o Zoom. Usa recursos que não existem em uma sala de teatro, ou pelo menos que precisariam ser bem adaptados para chegarem no mesmo fim.

Logo de cara, você tem a possibilidade de contar com um elenco grande sem muita dificuldade. Basta que o ator tenha conexão com internet e câmera (de celular, de laptop, webcam, o que for), e que se familiarize com a tecnologia. Em A Arte de Encarar o Medo, existe uma atriz sueca (Ulrika Malmgren) que participa direto de Estocolmo. O ator Cesar Siqueira, por sua vez, não chegou a conhecer o resto do elenco pessoalmente!
O fator do “ao vivo” segue como a principal tônica. Você sabe que todas aquelas pessoas estão atuando e trabalhando naquele momento, com hora marcada, só que a noção de espaço é ampliada. Cada um está em um lugar. Existem momentos em que eles sobem escadas, batem em portas, saem de um cômodo para entrar no outro. Numa hora eles também usam o recurso de mudar o fundo da transmissão. Duas pessoas podem contracenar uma com a outra mesmo com uma distância de muitos mil quilômetros. Por aí vai.

Falando nem parece, mas o fato da peça trazer vários atores manipulando tecnologia para te contar uma história respeitando o distanciamento social traz uma emoção que pode ser diferente da do teatro tradicional, mas não deixa de ser crepitante. Também surge uma amplificação da intensidade dessa arte dramática. Fiquei me perguntando se algo da minha impressão mudaria se eu estivesse assistindo a algo previamente gravado e não apresentado ao vivo. E acho que sim. Existe um sabor no fato de eu fazer parte do grupo de pessoas que entrou naquele momento naquela sala virtual e assistiu ao que foi apresentado. Ninguém mais vai ver aquilo (a menos que a produção tenha gravado, para fins de documentação). É diferente das lives que ficam guardadas e podem ser acessadas posteriormente.
Esse "novo teatro” (que tem gente que não gosta de chamar de teatro, pois teatro seria outra coisa) se aproxima do Snapchat e dos stories de Instagram na sua efemeridade, e é efêmero de maneira ainda mais drástica!

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Com tantas questões a respeito da forma em si, você pode achar que não me ative tanto ao conteúdo. Está errado: a peça foi criada já durante a pandemia e é muito sensível em relação a ela. São 50 minutos de uma história que, sem ser linear com começo, meio e fim (adoro narrativas assim), apresenta um cenário em 2035 onde a humanidade não conseguiu vencer a doença e segue isolada, morando em cidades vazias, cada um trancado em sua casa. Esse futuro distópico que já não conta com emissora de TV e rádio estranhamente continua possuindo energia elétrica e internet, ninguém sabe como. E aí pessoas enlouquecem, criam novos códigos sociais, relembram o passado e, principalmente, sentem medo.

Tem uma entrevista com os próprios dramaturgos, Ivam Cabral e Rodolfo García Vázquez (Rodolfo também é o diretor), no site d’Os Satyros. Recomendo a leitura.

E também recomendo a peça em si! São sessões de sexta, sábado e domingo. Não sei exatamente até quando a montagem vai estar em cartaz, então é bom garantir o ingresso para o próximo fim de semana. Ele custa R$ 20 mas quem quiser pode doar mais e quem não puder (porque está em dificuldades financeiras decorrentes da pandemia) consegue assistir de graça. Para ter um ingresso, acesse o site da Sympla.

Mesmo que você não se interesse pelo tema, acho interessante que as pessoas conheçam essas novas práticas. É um mundo de possibilidades que se abre. Dependendo da ideia e do desenvolvimento, assistiria a outras coisas nesse formato mesmo pós-pandemia.

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June 22, 2020 /Jorge Wakabara
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...
Em breve, na Netflix, "Dois Tapas".
... pic.twitter.com/U9bAqjXqZi

— Alexandre Archer (@Alexandrefull) January 1, 2020

O catolicismo e o cristianismo: Messiah, Dois Papas, minha visita ao Vaticano, #wakeupolive e tudo e tal

January 06, 2020 by Jorge Wakabara in cinema, TV, viagem

Que azar o do Papa Francisco: em plena campanha de divulgação de Dois Papas, o novo filme de Fernando Meirelles que está na Netflix (e que não conta com Ilze Scamparini, um crime), ele vai lá e dá dois tapas na mulher que agarrou sua mão sendo filmado. Todo mundo perdeu a paciência com 2019 - até o papa "bonzinho", o papa "progressista", o papa do povo.
Muitas aspas nessa hora, a gente chega lá.
A saber: o Papa Francisco pediu desculpas. Disse na primeira missa do ano na Basílica de São Pedro: “Muitas vezes perdemos a paciência. Eu também. Peço perdão pelo mau exemplo de ontem.” E ainda falou sobre violência da mulher.

E a saber: eu fui no Vaticano no dia 27/12, um pouco antes dos Dois Tapas. Não vi o papa. Mas vi uma propaganda bem grandona do filme Dois Papas bem perto da praça de São Pedro, mais especificamente na entrada dela do lado direito. Que atrevidos, não? Chocado!
Aliás: vi Dois Papas um pouco antes de embarcar para Roma. Isso foi, como podem imaginar os que assistiram ao filme e já foram ao Vaticano, BEM interessante. Mas vamos começar um pouco mais de trás, porque gostaria de contextualizar vocês antes de sair dando opinião.

A minha formação católica

O lugar de congregação para mim nunca foi a igreja, apesar da família tanto por parte de pai quanto de mãe ser católica. Tive até um tio padre. Mas não me lembro de me sentir parte de um grupo na igreja - ela era mais uma obrigação aos domingos. Não me relaxava nem me inspirava repetir palavras decoradas que eu até entendia o significado, mas não necessariamente concordava. Fiz primeira comunhão e crisma bem alheio, mais para não confrontar minha mãe. E estudei durante toda a minha vida em colégio católico, com aulas de religião. A minha relação com todo esse conhecimento virou mais de interesse histórico; e hoje eu me diria agnóstico, rezando às vezes e somente para agradecer (porque me sentiria muito interesseiro se rezasse para pedir, já que não me dedico tanto a esse lado espiritual kkkkkk). Na maior parte do tempo, penso que se existe uma força maior, se ela é ciente e existe um plano dela, me resta confiar no plano. Que argumento contrário eu teria? Nem sei qual plano é esse. Então, que seja; vou agradecendo as alegrias, as oportunidades, e me incluo, porque acho que a força maior, na minha crença, inclui a todos.
Portanto entendi a Anitta quando ela agradeceu a si mesma… HAHAHAHAHAHAHAHA

Isso posto, voltando ao meu interesse histórico: tudo que cai na minha mão sobre catolicismo, judaísmo, islamismo… LEIO. Assisto. Devoro. Interessa-me sobretudo o Jesus histórico, essa figura que provavelmente eu seguiria pois SOY REBELDE kkkkkkk Nessa parte, entre livros que já li, recomendo:

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Devo ter esquecido algum. Enfim.
Ao filme!

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O filme Dois Papas

Muito já foi dito, e portanto não vou me estender a respeito, sobre o caráter ficcional do longa. Sim, porque apesar de trazer personagens reais, para começo de conversa não existe nenhuma evidência que o encontro entre o Papa Bento 16 e o na época o Cardeal Jorge Bergoglio sobre o pedido de aposentadoria do segundo realmente aconteceu, e é nisso que o filme está centrado. Assim como a Rainha Elizabeth 2ª que a gente vê em The Crown é uma versão da personalidade histórica real, aqui os protagonistas são versões criadas pelo roteirista Anthony McCarten que simbolizam dois vieses da igreja católica apostólica romana atual. E, olhe lá, mesmo aí existe certa polêmica: Papa Bento 16 é retratado como cartesiano, acadêmico, conservador, tradicional; e o futuro Papa Francisco simboliza a renovação, a adaptação aos novos tempos, um maior despojamento e um maior diálogo com os seguidores.

Na vida real, há controvérsias. Um exemplo é o envolvimento de Jorge Bergoglio com a ditadura argentina (o filme não esconde esse episódio, mas alguns defendem que o maquia e suaviza bastante, humanizando-o e omitindo fatos). E não exageremos: é claro que a figura de Papa Francisco (o real) é nitidamente mais simpática, carismática, do que a de Papa Bento 16 (o real também); isso não quer dizer que ele está ali para revolucionar a igreja. Já se passou um tempo para isso e ele não o fez; assuntos como o celibato, a exclusão de mulheres no sacerdócio e a homossexualidade vista como pecado não avançaram, apesar de terem sido postos em discussão. Acho exagero até chamá-lo de reformista. Não fez reforma concreta alguma. Vai fazer, ainda? Sinceramente acho que não.

Então, resumidamente, o longa coloca os dois como avatares de alas opostas da igreja e, fazendo-o, pinta o Papa Francisco de uma cor muito mais dourada e reluzente. A cor cai bem para a figura pública real; já o recheio… não fantasiemos.
Acho Dois Papas bom pelas discussões que desperta e estimula, e não como narrativa histórica. O chamado para o sacerdócio, a fé (e o questionamento dela; questionar a fé é traí-la ou reforçá-la?), o papel e o comportamento da igreja em acontecimentos sociais que afetam seus fiéis e o mundo.

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O que espera-se de um papa? Certamente a questão do abuso sexual infantil na igreja é quase evaporada do roteiro. Na hora em que ela é endereçada de maneira concreta, a voz de Anthony Hopkins some, o que a gente vê é um sobe som. Corta para Jorge Bergoglio (Jonathan Pryce) indignado. Subentende-se que Papa Bento 16 sabia de tudo e não tomou uma atitude mais concreta e energética a respeito (o que é provavelmente verdade). Varreu-se para baixo do tapete, e consequentemente mais crianças ficaram à mercê de abuso. Mas isso que estou dizendo não é dito com todas as letras no roteiro. É como um mistério de Fátima. É como se continuasse sendo um segredo. E não é mais, no mundo: todos sabemos, saíram reportagens, foi (e é) um escândalo.

Emblemático o filme acabar em futebol. Não me entendam mal, eu gostei muito: interpretações impecáveis, narrativa envolvente, questões importantes. Mas no quesito moral, a problematização grita. Seria uma obra bem diferente se o foco também estivesse nessa temática da pedofilia que, afinal, foi central ao lado dos escândalos do banco do Vaticano para o processo de renúncia de Papa Bento 16. A renúncia, na verdade, não é a protagonista, por mais que o título sugira isso; se fosse, esses assuntos seriam mais endereçados, mais dominantes. O filme é sobre o que é o catolicismo hoje.

E o que é o catolicismo e, de maneira mais abrangente, o cristianismo hoje?
Isso me leva ao #wakeupolive, acontecimento recente que não sei se esteve no seu radar…

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#wakeupolive

Vou procurar ser o mais respeitoso possível com a fé de cada um, porém sem ignorar a infactível ciência e a minha opinião pessoal. Um casal de norte-americanos da Igreja Bethel em Redding, Califórnia, viu sua filha de 2 anos, Olive Alayne, de repente morta por parada respiratória. A notícia devastadora encontrou uma reação surpreendente: foi estimulado o compartilhamento da hashtag #wakeupolive e pedidos de oração e vigília a espera de um milagre. Isso mesmo: vários cristãos, não só da igreja Bethel, começaram a rezar para pedir que a menina ressuscitasse. Consequentemente, eles não a enterreram: foram 6 dias de oração até um anúncio-declaração de que o milagre não havia acontecido e o enterro acontecer.

Quem confrontava essas pessoas dizendo que infelizmente Olive estava morta e não adiantaria rezar era acusado de falta de fé. O mais estranho: foi criada uma página de crowdfunding com o objetivo de arrecadar US$ 100 mil. Dizia-se que o dinheiro será usado com despesas médicas, mas muitos levantaram as sobrancelhas: um milagre, digamos, um tanto caro…

Existem mil jeitos de se reagir ao luto. O dessa família foi canalizar em orações que tomaram proporções maiores. Para quem vê de fora, principalmente para ateus, agnósticos e não-evangélicos, soa delirante.

No fim do ano passado aconteceu um atentado na produtora Porta dos Fundos no RJ ligado a um grupo que se autodenomina Comando Insurgência Popular Nacionalista da Grande Família Integralista Brasileira, em retaliação a um especial de fim de ano vinculado na Netflix que mostra em tom de paródia rasgada um Jesus gay.

Liberdade religiosa, sim, mas a nossa liberdade não termina onde a dos outros começa? Claro que ambos os casos são muito diferentes pelas suas consequências mas encontro um denominador comum neles, na minha humilde opinião: a reação desmedida e pretensamente justificada na fé. No caso do #wakeupolive, cada um com seu cada qual: foram os próprios pais que decidiram não enterrar a filha a espera de um milagre. No outro, terrorismo. É bom dar nome aos bois, e é isso: terrorismo. Fundamentalismo cristão.

Houve um tempo em que o cristianismo não era o padrão, o status quo, a maioria. Cristãos foram perseguidos pela sua fé, assim como também já o foram (e sempre existe aquela sensação de perigo à espreita de voltarem a ser) outros grupos religiosos. Religiões de matriz afro sabidamente sofrem muito preconceito no Brasil, existem relatos de atentados a terreiros.

Hoje o cristianismo está intrinsicamente ligado na nossa cultura ocidental, faz parte da base dela. Você pode até não ser cristão, mas os valores cristãos de alguma forma conversam com a sua formação identitária pois dominam a sociedade, estão em sua raiz.

O que me leva de volta à minha visita ao Vaticano…

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As escolhas estéticas do Vaticano são as nossas escolhas

Fiquei bem impressionado com Capela Sistina. Como já disse, vi Dois Papas um pouco antes de visitá-la. Fizemos uma visita guiada, então recebi informações frescas sobre Michelangelo, o gênio por trás dos afrescos mais importantes do local (a saber, o Juízo Final ao fundo e as obras do teto). A técnica de afresco, para quem não sabe, requer precisão: se você erra alguma coisa, não dá para pintar por cima. É preciso destruir e recomeçar o trabalho. Outra coisa que a gente precisa lembrar é que o teto foi criado por Michelangelo bem antes do Juízo Final: é o mesmo artista mas ele mudou bastante nesse intervalo, e aprendeu muito também. Dizem que Michelangelo era recluso, taciturno, bem misterioso. A personificação do mito do gênio incompreendido.

A estética de grande parte das obras do Vaticano e do Renascimento é herdada do clássico greco-romano. E na Grécia, você sabe… o homoerótico existia sim. Não adianta querer abafar.
E também não é coincidência que o que é considerado beleza padrão hoje já estava lá. Inclusive é de lá que veio o padrão. O corpo musculoso considerado perfeito, a imagem da saúde plena ligada a esse corpo, a masculinidade tóxica.
Jesus em Juízo Final não é uma figura magra como estamos acostumados a ver em outras obras. Ressurgido no dia do acerto de contas, ele aparece poderoso como um cara que frequenta a academia. Os anjos não possuíam pedaços de pano escondendo seus órgãos genitais no projeto original - esses detalhes pudicos foram acrescentados tempos depois, por outro artista a pedido do então papa em exercício.

Sem falar na ostentação como símbolo do poder. A Galleria delle Carte Geografiche do Padre Ignazio Danti ainda inclui, veja só, dados científicos na fórmula: são mapas lindos mas antes disso preocupados com a precisão na representação da realidade.

Mapa da Sicília na Galleria delle Carte Geografiche

Mapa da Sicília na Galleria delle Carte Geografiche

Quanto menos informação existe circulando, mais poder tem quem detém a informação.

O Vaticano também pode servir como metáfora para o catolicismo. Enorme, impossível de ser observado em detalhes de uma vez. Cheio de maravilhas, de história, e também de surpresas. Um tanto anacrônico. Lotado, mas de muita gente que prefere passar por ele do que vivenciá-lo.

A Basílica de São Pedro está cheia de mosaicos com pedras bem pequeninas reproduzindo obras incríveis - de Rafael, por exemplo. As originais não podiam ficar ali - a fumaça das velas, por exemplo, estava danificando-as. E uma das Pietás de Michelangelo está ali, mas atrás de um vidro, num aquário. Quase serena e conformada com o filho morto nos braços.

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O mito do Messias nas religiões monoteístas varia. Antes e depois de Jesus, outros foram apontados para o mesmo papel. Jesus para os muçulmanos não é o Messias e sim um profeta que antecedeu o maior profeta Maomé, e é chamado Issa.

Na visão islâmica, Issa não foi crucificado e nem morreu - subiu aos céus e deve voltar nos últimos dias do mundo. No cristianismo, ocorreu a crucificação e a ressurreição seguida de acensão - Jesus também está à direita do pai e também volta nos últimos dias. Para os judeus, o Messias ainda não voltou: uma série de eventos precisaria acontecer em conjunto, como a reconstrução do Templo de Jerusalém.
A nova série da Netflix, Messiah, traz uma trama bem interessante.

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E se um novo Messias surgisse?

A ação da série começa na Síria em conflito, e um homem é apontado como o responsável por uma tempestade de areia que faz o Estado Islâmico não conseguir atacar a capital. As pessoas começam a acreditar que ele é o Messias, um salvador do povo.
Ele é?
Messiah encontrou reações mistas. Gostei enquanto enredo, me entreteve. É interessante como eles mostram o quanto que as notícias se espalhariam e viralizariam, e como as pessoas se comportariam diante delas. Achei que eles até pegaram leve; na minha opinião o furdúncio ia ser muito maior!

Existem vertentes: a agente da CIA Eva Geller (Michelle Monaghan) acredita que Al-Masih (Medi Dehbi) é um fantoche político, e ela segue essa tese com um fervor quase religioso. A princípio ela não tem uma prova: é um instinto. De origem judia e apegada ao pragmatismo, ela tem vários problemas pessoais, mas nem isso a transforma numa crente. Ela é crente sim: mas do contrário, do ateísmo.

O agente da Mossad Aviram Dahan (Tomer Sisley) acha que ele é um impostor mas hesita quando Al-Masih fala de segredos seus. Como ele poderia saber deles? Isso é um sinal de que Al-Masih é especial ou ele tem informantes muito bons? Jibril Medina (Sayyid El Alami) vira uma espécie de discípulo, crê em uma cega ingenuidade do tipo "Deus proverá". O pastor Felix Iguero (John Ortiz) fica entre achar que Al-Masih é o novo Messias e, mesmo que não seja, se aproveitar disso para formar uma nova igreja. Rebecca Iguero (Stefania LaVie Owen) também é conquistada pelo carisma dele, e sua epilepsia é misturada com um ar místico-profético; por isso ela teria sido escolhida. E assim os personagens seguem, pendendo para cada lado.

Considero que um dos segredos da série é, ao mesmo tempo que ela revela coisas sobre Al-Masih (como por exemplo o fato dele não ter surgido do nada mas ter sido criado pelo tio mágico vigarista, criado como muçulmano e ter um irmão), ela nunca deixa claro se Al-Masih tem poderes milagrosos e um caráter divino. Ou melhor: ela nunca nega essa possibilidade nem confirma. Ele anda sobre a água - é um truque de imagem? Ele "salva” Rebecca - ou simplesmente os dois conseguem sobreviver a um tornado por coincidência? Ele ressuscita um menino baleado - ou isso foi uma farsa armada, já que depois o menino e sua família somem? A cena final (CUIDADO, SPOILER): eles sobrevivem à queda do avião porque simplesmente sobreviveram, ou Al-Masih os salvou? O menino que diz que Aviram estava morto é apresentado, cenas antes, como uma criança que gosta de inventar histórias. E aí? Aviram foi ressuscitado por Al-Masih?

Também não é revelado o real objetivo de Al-Masih: ele quer promover a harmonia e um novo período de paz? Ou a destruição?

Temporada 2 na minha mesa, agora!

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Todas essas produções audiovisuais que citei já estão na Netflix.

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January 06, 2020 /Jorge Wakabara
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